segunda-feira, 28 de abril de 2008

Algumas contradições do marxismo

por Carlos I.S. Azambuja

Naturalmente, nós da ANL (Aliança Nacional Libertadora) também devemos e precisamos conspirar. Nós desejamos chegar ao poder; nós sabemos que só quando chegarmos ao poder, instalando o governo social-revolucionário, o governo da ANL, teremos a democracia e a emancipação do nosso país. E ao poder, nós o sabemos, só poderemos chegar pela luta armada, pela luta insurrecional”. (Luiz Carlos Prestes, setembro de 1935, fls 80 do livro O Partidão, de Moisés Vinhas, que foi membro do Comitê Central do PCB)

As ações dos partidos comunistas que se apoderaram do poder são coerentes com as teorias de Marx? Essa é uma pergunta que exige reflexão, embora a teoria marxista seja contraditória: diz que na sociedade capitalista quando as forças produtivas tiverem alcançado o pleno desenvolvimento, produzir-se-á um choque violento de classes que conduzirá à revolução socialista. É necessário que o capitalismo se desenvolva plenamente, pois o socialismo exige a industrialização plena e uma forte classe proletária, capaz de desempenhar o papel de redentora das massas.

Por outro lado, porém, já em 1848, antes portanto do capitalismo se desenvolver, Marx e Engels convocaram, no Manifesto do Partido Comunista, a união dos proletários de todos os países para fazerem a revolução – “proletários de todos os países, uni-vos”.

Enquanto a teoria previa o advento do socialismo somente após o natural desenvolvimento das forças produtivas na sociedade capitalista, a prática concitava à unidade dos proletários de todo o mundo para a revolução socialista, abstraindo o estado em que se encontravam as forças produtivas na Europa de então.

Para apoderar-se do poder político, diz a teoria, é necessário que um grupo de revolucionários profissionais organize um partido – que necessariamente receberá a denominação de comunista – e que, sob o centralismo democrático, assumirá o papel de vanguarda do proletariado.

Segundo Marx, “a transformação das relações sociais” não surge de “mudanças tecnológicas”, mas da “luta de classes”. “Na base dessas relações modificadas desenvolve-se um modo de produção especificamente diferente, que cria novas forças produtivas materiais”.

Portanto, o que muda primeiro, como resultado da luta de classes, não são as forças produtivas ou os instrumentos de produção, e sim a mentalidade das pessoas, as relações sociais.

Lênin em seu relatório apresentado ao X Congresso do partido (8 a 16 de março de 1921) sublinhou, por sua vez, que “o que é decisivo é a transformação da mentalidade e dos hábitos”.

Cerca de 8 anos depois, Stalin em um discurso abordando as questões da política operária na URSS, em 17 de dezembro de 1929, no momento em que era iniciada a política de coletivização em massa no campo, declarou que “será necessário trabalhar muito para refazer o camponês-kolkoziano, para corrigir sua mentalidade individualista e fazer dele um verdadeiro trabalhador da sociedade socialista. E chegaremos mais rápido a isso na medida em que os kolkozes sejam providos de máquinas e tratores...

É evidente a contradição de Stalin com os escritos de Marx e Lênin, ao considerar que a passagem à coletivização não será resultante da “luta de classes” ou da “transformação das relações sociais”, e sim do “emprego de máquinas e tratores” como forma de corrigir a “mentalidade individualista” dos camponeses.

Assim, de acordo com a concepção stalinista, não são os camponeses que se transformam graças à luta de classes, mas são transformados pelas máquinas e tratores.

Antes de assumir o poder, o partido é um ferrenho defensor das reivindicações das amplas massas. Depois de assumir o poder impõe, em nome do proletariado, a ditadura sobre o proletariado.

Se o país possui uma frágil economia, diz-se que é oprimido pelo imperialismo. Assim, os comunistas forjam a aliança da revolução proletária com movimentos de libertação nacional. Isto é, promovem o comunismo à custa do nacionalismo.

Nenhuma pessoa sensata é capaz de opor-se à independência nacional de seu país. Os comunistas, porém, ao se engajarem nessa causa nobre, nada mais fazem do que cumprir a primeira etapa da sua revolução. Tão logo assumem o poder político, hipotecam a independência nacional à União Soviética e ao Movimento Comunista Internacional. Quanto aos nacionalistas sinceros dos movimentos de libertação, basta conhecer um pouco de História para verificar quais têm sido seus destinos, tão logo vitoriosas as revoluções bolcheviques.

O PC utiliza o proletariado como força principal da sua revolução e busca atingir seus fins revolucionários fomentando, em favor do partido, a luta de classes entre o proletariado e a burguesia. Depois essa luta é ampliada, incluindo não apenas o proletariado, mas todos os trabalhadores, e logo a seguir, todo o povo, formando uma ampla frente.

Essa luta entre comunistas e não-comunistas é por eles denominada de luta de classes, conceito que é estendido indefinidamente.

Portanto, não importa se no país-alvo existem ou não uma classe trabalhadora e uma classe capitalista e em que nível se encontram as forças produtivas. Conquanto exista a vanguarda do proletariado - o partido – os comunistas continuarão enterrando os capitalistas em países onde não há capitalismo e a fazer a revolução proletária onde não exista uma classe operária, como na Rússia de 1917.

O Estado, segundo Marx, na ditadura do proletariado se iria enfraquecendo, até desaparecer no comunismo. No entanto, a Resolução Política aprovada na XVI Conferência do PCUS, posteriormente ratificada pelo XVI Congresso (1930), apela para a construção do socialismo, a concentração das forças do partido, da classe operária e, também, à concentração das forças do Estado. Assim, toma força a tese da “revolução pelo alto”, expressão que Marx utilizou para descrever a política de Napoleão Bonaparte, executor da revolução de 1789, na França.

A propósito da “revolução pelo alto”, consta na História do PCUS, aprovada pelo Comitê Central, que a coletivização forçada, iniciada em 1929, “tinha de original o fato de ter sido realizada pelo alto, sob a iniciativa do poder do Estado” .

Segundo Marx, após a revolução a burguesia seria expropriada e não haveria distinção entre trabalhadores intelectuais e operários.

No entanto, logo em 1920, Lênin estabeleceu a “não-limitação de salários dos técnicos e especialistas”, a existência de um diretor único nomeado pelos aparelhos centrais, que seria o único responsável pela direção da empresa, bem como a “autonomia financeira”, que permitiria à empresa dispor de uma parte de seus lucros.

Desenvolveu-se assim, menos de três anos da revolução bolchevique, uma nova burguesia, a Nomenklatura, nas empresas do Estado e do partido. Essa burguesia é de um novo tipo, pois embora não disponha da propriedade jurídica privada, nada a impede de dispor, de fato, dos meios de produção.

Para apoderar-se do poder político, os comunistas, historicamente, participam primeiro de um governo de coalizão e, como integrantes desse governo o paralisam e forjam contradições insanáveis, até assumirem o poder total. O novo regime passará a culpar, então, o imperialismo pela sua incompetência, e a retribuir, com apoio material e político, o auxílio recebido de organizações revolucionárias e mesmo de governos de países vizinhos, como ocorreu, por exemplo, na década de 80 com o regime sandinista, na Nicarágua.

Sob o manto do internacionalismo proletário a União Soviética sufocou as revoltas populares na Hungria, Polônia, RDA e Checoslováquia. Depois, fez o mesmo no Afeganistão. A China invadiu o Vietnam, e o Vietnam, por sua vez, anexou o Laos...

O social-imperialismo, o expansionismo armado, a subversão, a agressão e a anexação sempre foram palavras de ordem estratégicas do bloco comunista, que apesar de repudiado pela sua população, nas ruas, não desistiu de pintar de vermelho o mapa-mundi.

O marxismo sempre afirmou que a maior contradição de nossa época é a que existe entre o socialismo e o imperialismo e não se cansa de proclamar a força do campo socialista, da classe trabalhadora e do nacionalismo, afirmando que essas são as três grandes forças revolucionárias: o movimento comunista internacional, o movimento operário nos países capitalistas desenvolvidos e os movimentos populares de libertação nos países coloniais.

A estratégia comunista de promoção da revolução mundial é conhecida, mas recordá-la não faz mal a ninguém: consiste em criar um ambiente internacional favorável aos comunistas e aumentar o seu poderio econômico e militar para apoiar e sustentar mais eficientemente os movimentos revolucionários em todo o mundo.

Finalmente, o que hoje se observa é que o marxismo que, segundo seu criador, constituiria a sociedade sem classes, serviu apenas para criar uma forma moderna de totalitarismo com base em uma doutrina contraditória, incoerente e ilusionista, mas que, apesar disso, faz da omissão e da ausência de conhecimentos históricos e doutrinários dos não-comunistas o seu principal fator de força.

Norberto Bobbio, marxista italiano escreveu em seu livro Qual Socialismo?, editora Paz e Terra, 1983, que “o problema da conquista do poder pelo movimento operário seja a condição preliminar para a destruição da sociedade capitalista e para a instauração de uma sociedade diferente, fundada sobre a coletivização dos meios de produção, pode ser considerado ponto pacífico.

O que não é, de forma alguma, pacífico, depois do que ocorreu na União Soviética e nos países onde o socialismo foi importado do exterior, é que o problema da conquista do poder passe a ser isolado completamente do problema do seu exercício ou, em outras palavras, pelo modo pelo qual o poder é conquistado nada tenha a ver com o modo como será, em seguida, exercido.

Transferir para depois da conquista do poder o problema do Estado, da organização estatal, produziu o seguinte efeito: o partido, para o qual se voltaram todas as atenções como órgão de tomada do poder, terminou por tornar-se, ele mesmo, o Estado”.

domingo, 27 de abril de 2008

O liberalismo e a pobreza

Roberto Campos
1/12/96

"Esperemos que os socialistas, que no passado adoraram o Deus da História, aprenderão suas lições. Dar-se-ão conta, afinal, que não apenas a economia de comando fracassou, mas também que o Estado social democrático assistencialista é um Deus que falhou"
Deepak Lal

As esquerdas brasileiras (ou será que só restam canhotos?), mesmo após a derrota mundial do socialismo, que elas consideram apenas um sucesso mal explicado, se atribuem duas superioridades: maior decência ética e maior ternura pelos pobres. Na realidade, sucumbem a interesses do corporativismo burocrático, em detrimento das massas, e reduzem a velocidade do crescimento econômico. E este é o único remédio efetivo para a pobreza.

Um esplêndido livro recente "The political economy of poverty, equity and growth" (Clarendon Oxford Press, 1996), de autoria de dois economistas asiáticos -um indiano, Deepak Lal, e outro birmanês, H. Myint-, ambos testemunhas da ineficácia do socialismo dirigista em seus respectivos países, desmistifica ilusões sobre o socialismo e sobre seu filho dileto, o "welfare state". É uma análise filosófica, política e econômica dos sucessos e insucessos da luta contra a pobreza em 21 países (inclusive o Brasil), entre 1950 e 1985.

As conclusões são interessantes:
  • O crescimento rápido sempre alivia a pobreza, independentemente dos esforços da burocracia assistencialista;
  • Não há um efeito claro e certo do crescimento sobre a disparidade nos níveis de renda, podendo esta aumentar ou diminuir durante o processo de rápido crescimento. Mas a experiência dos tigres asiáticos desmente o fatalismo da chamada "Lei de Kuznets", segundo a qual a distribuição de renda pioraria inicialmente no desenvolvimento capitalista, para só melhorar depois;
  • O instrumento mais eficaz para a correção da pobreza absoluta não é o Estado Interventor, fantasiado de engenheiro social benevolente, e sim o Estado Liberal (ou seja, o Estado Jardineiro).

Este libera as energias produtivas do mercado, tributa pouco e procura assistir os pobres e desvalidos por benefícios específicos para eles direcionados, preferencialmente através de entidades privadas, e não por esquemas globais de seguridade social, administrados por políticos e burocratas.

A pobreza pode assumir vários aspectos: a pobreza "estrutural", ou de massa, que até a revolução industrial parecia uma fatalidade humana; a pobreza "conjuntural", que tradicionalmente advinha de desastres climáticos ou de guerras e conflitos políticos, mas que, na civilização moderna, provém também de ciclos econômicos que provocam desemprego e recessão; e o "desvalimento", ou seja, a situação dos que não têm capacidade de trabalho por deficiências físicas ou mentais.

No tocante à questão global da pobreza, há um conflito histórico entre duas visões do mundo que se apresentam em várias formas e graus: o liberalismo e o dirigismo.

Os liberais insistem em separar duas questões que são habitualmente confundidas no debate corrente: a cura da pobreza e o igualitarismo. A extinção da pobreza absoluta é realizável e deve ser um objetivo social. O igualitarismo é utópico, e todas as tentativas de alcançá-lo geraram ineficiência ou despotismo.

Os liberais certamente lutarão pelo alívio da pobreza; mas rejeitam o igualitarismo socialista. Em outras palavras, consideram a "equidade" desejável e a "igualdade" impossível.

São várias as razões por que é fútil pretender-se, através do intervencionismo governamental, alcançar uma distribuição igualitária das rendas:
  1. Deus não é socialista e distribuiu com profunda injustiça os dotes de inteligência, criatividade e diligência;
  2. inexistindo normas objetivas de justiça, ou justiciadores sábios e benevolentes, torna-se perigoso tentar corrigir as injustiças divinas pela "justiça social" ditada pelo ideólogo, burocrata ou político de plantão;
  3. fazer justiça social pela abolição da propriedade (solução comunista) ou pela tributação distributivista (solução socialista) redunda em tirania política e expurgos em massa, ou então, em perda de eficiência econômica (a supertributação desincentiva a criatividade e o esforço).

Donde ser melhor, como propõem os liberais, que o Estado seja mais modesto: deve buscar a extinção da pobreza absoluta sem tentar implantar o igualitarismo. Por isso os liberais não falam em "seguridade social universal" e não simpatizam com a "previdência pública compulsória". Preferem falar em "redes de segurança para os desvalidos" ou em "garantia de renda mínima" para os realmente pobres. No Brasil, a coisa é ainda mais rudimentar: a cura da inflação é prefácio e precondição da cura da pobreza.

Uma das deformações dos sistemas assistenciais desenvolvidos nas sociais democracias é aquilo que George Stigler chama de "privilégios dos diretores", isto é, a captura de benefícios pela classe média. Esta, nas sociedades industrializadas, é politicamente muito mais numerosa que os ricos e muito mais articulada que os pobres.

Cria-se assim o "Transfer State", isto é, o Estado Transferidor, de que o nosso INSS é modelo exemplar. O "Transfer State" morde os ricos pela tributação e pune os pobres com aposentadorias ridículas, desviando recursos para o bem-estar da classe média -professores, jornalistas, magistrados, militares, congressistas e burocratas, que gozam de aposentadorias precoces, desproporcionais às contribuições. São os chamados "intitulamentos políticos".

A única maneira de se evitar que o poder político da classe média puna a produtividade dos mais eficientes e explore a passividade dos pobres é substituir o sistema de previdência pública compulsória pela capitalização individual.

É o sistema de cadernetas de poupança previdenciária, onde cada cidadão depositaria sua contribuição, sabendo que os benefícios futuros disso dependem. É o sistema chileno, no qual a contribuição compulsória, anteriormente paga ao governo, é aplicada em fundos de pensão privada, não havendo assim transferências imerecidas de renda.

O governo não intervém para redistribuir rendas, limitando-se a fiscalizar o sistema e a complementar a renda daqueles que, ao fim de sua vida laboral, não recebam um mínimo vital para sua sobrevivência. O curioso é que o tão vilipendiado general Pinochet, sem alardear superioridade ética ou sensibilidade social, intuiu duas coisas fundamentais para a diminuição da pobreza -o crescimento sustentado e a correção dos abusos do "Transfer State".

Lal e Myint demonstram a precariedade das tentativas de distributivismo social em países de baixa taxa de crescimento. Durante algum tempo, Costa Rica, Sri Lanka e Uruguai foram exibidos como exemplos de países bem-sucedidos nessa conciliação. Isso durou pouco porque esses países entraram em crises fiscais, ou estagnação econômica, tendo o Uruguai tido que rever seu pesado Estado Providência a fim de absorver idéias do modelo chileno.

A cura da pobreza não depende da decadência do político, da boa vontade do burocrata ou da piedade do clérigo. Depende do crescimento econômico. E as molas clássicas do crescimento continuam sendo a poupança, a produtividade e o espírito empresarial. Priorizar a realidade humilde, em vez de entronizar a utopia fugaz, é a grande virtude do liberalismo.

Roberto Campos, 79, economista e diplomata, é deputado federal pelo PPB do Rio de Janeiro. Foi senador pelo PDS-MT e ministro do Planejamento (governo Castello Branco). É autor de "A Lanterna na Popa" (Ed. Topbooks, 1994).

A Praga do Coletivismo

Rodrigo Constantino
“The smallest minority on earth is the individual. Those who deny individual rights, cannot claim to be defenders of minorities.”
(Ayn Rand)
Se me fosse questionado qual a maior praga da Humanidade, não hesitaria muito em responder que é o coletivismo. Entendo o coletivismo aqui como a supressão do indivíduo como um ser e uma finalidade em si mesmo. Como exemplo de diferentes vertentes do coletivismo, temos várias ideologias que deixaram um rastro enorme de sangue na História. O nazismo partia de uma visão coletivista de raças, enquanto o marxismo aderia ao prisma coletivista das classes. O nacionalismo colocava a nação como um fim em si, transformando seus indivíduos em simples meios para algo maior. Há ainda um coletivismo mais complexo, das culturas, que vê o indivíduo como nada mais que um produto delas. Entre estes tipos de coletivismo, pode haver intercâmbio, evidentemente. Mas o verdadeiro denominador comum deles é o inimigo, que claramente é o indivíduo.

Na ótica coletivista, os indivíduos são apenas representantes de suas classes, raças, credos, nações ou culturas. Não são seres ativos, moldando o próprio destino, ainda que sob influência de todas essas características. São autômatos, como marionetes sem qualquer autonomia, sem responsabilidade, ou seja, habilidade de resposta. Os valores, o futuro, os interesses, tudo foi determinado pelo coletivo. Neste tipo de mentalidade, há um verdadeiro assassinato do individualismo. Cada ideologia coletivista dá prioridade a uma única característica, entre infinitas que formam cada indivíduo. Para o nacionalista, o simples local de nascimento no mapa vale mais que qualquer outro valor. Para o marxista, um burguês sempre terá mais afinidade com outro burguês, partindo de um determinismo de classes. Para o fanático religioso, apenas o credo importa, e um pérfido pode ser mais querido que um sujeito honesto, caso a religião deste seja alguma outra qualquer. Nenhuma dessas ideologias considera de forma mais equilibrada as inúmeras características individuais, assumindo ainda que cada indivíduo é um fim em si mesmo. Assim, nazistas podem exterminar judeus em nome da “raça pura”, marxistas podem meter uma bala na cabeça dos burgueses em nome da “ditadura do proletariado”, nacionalistas podem sacrificar alguns indivíduos em nome da “prosperidade da nação”, religiosos podem lançar bombas em outros em nome da “fé redentora”, e por aí vai. É o coletivismo suprimindo o indivíduo.

Essa praga coletivista vem de longa data. Platão, no livro A República, traça o que seria o Estado ideal, ainda que não exeqüível na prática. Há um claro viés coletivista, colocando os indivíduos como nada mais que instrumentos para a felicidade da “república”, como se esta não fosse mais que o somatório dos indivíduos que a compõem. Caberia aos sábios, claro, determinar as regras todas, aniquilando as escolhas individuais. Normalmente, o coletivista parte do pressuposto que ele estará sempre do lado legislador, criando as regras e decidindo o rumo da felicidade alheia. O coletivista é prepotente, enquanto os individualistas respeitam as preferências individuais, com maior humildade. Voltando a Platão, temos passagens bastante autoritárias no livro, proferidas supostamente por Sócrates, como: “Deixaremos ao cuidado dos magistrados regular o número dos casamentos, de forma que o número dos cidadãos seja sempre, mais ou menos, o mesmo, suprindo os claros abertos pelas guerras, enfermidades e vários acidentes, a fim de que a república nunca se torne nem demasiado grande nem demasiado pequena”. Ou ainda: “Os filhos bem nascidos serão levados ao berço comum e confiados a amas de leite que terão habitações à parte em um bairro da cidade. Quanto às crianças enfermiças e às que sofrerem qualquer deformidade, serão levadas, como convém, a paradeiro desconhecido e secreto”. O avanço dos “iluminados” sobre a liberdade individual não acaba por aí: “As mulheres gerarão filhos desde os vinte até os quarenta anos; os homens logo depois de passado o primeiro fogo de juventude, até os cinqüenta e cinco”.

Platão foi muito além, defendendo o fim das propriedades dos guerreiros, e deixando todas as decisões importantes para os poucos sábios. Essa outra passagem deixa claro que a república estaria muito acima, em grau de importância, dos indivíduos: “Assim, em nossa república, quando ocorrer algo de bom ou de mau a um cidadão, todos dirão a um tempo meus negócios vão bem ou meus negócios vão mal”. Todos participarão das mesmas alegrias e das mesmas dores, segundo suas próprias palavras. Homens, desta forma, não são mais homens, mas cupins! A república platônica conquistou sempre uma legião de seguidores românticos. O fim da propriedade individual, tudo comum a todos. Nada mais coletivista. Nada mais absurdo!

Thomas More iria resgatar esse sonho coletivista com força em seu Utopia, bastante influenciado por Platão. A utopia de More muito se assemelha ao comunismo, tanto que este mereceu uma estátua na União Soviética. Infelizmente, o resultado prático é bem diferente do imaginado, e Utopus acabou em um gulag da Sibéria. Nessa passagem notamos a semelhança: “Esse grande sábio (Platão) já havia percebido que um único caminho conduz à salvação pública, a saber, a igual repartição dos recursos”. Para isso, seria suprimida a propriedade privada. Os marxistas foram em linha semelhante, com a máxima “de cada um de acordo com a capacidade, para cada um de acordo com a necessidade”. Ora, quem decide quais as necessidades individuais? E quem decide sobre as capacidades individuais? Claro, os “sábios”. Os defensores dessas atrocidades sempre se colocam como parte integrante dos “iluminados” que irão moldar a sociedade, controlar os demais indivíduos, meios para o “bem maior”. Com o tempo, ninguém mais pode nada, e todos precisam de tudo. Não há como o resultado ser diferente do terror soviético.

Tommaso Campanella surgiu apenas requentando o mesmo prato azedo, em sua Cidade do Sol. A mesma linha coletivista, tratando homens como abelhas, que trabalham para a felicidade da “colméia”. Campanella sugere roupas iguais, tudo igual, e os filhos também serão propriedade “comum”. Todos iguais, mas sempre uns mais iguais que os outros. Os tais “sábios” sempre entram em cena, para comandar o show. Os indivíduos são apenas ratos de laboratórios, ferramentas “científicas”.

Os nacionalistas representam também um enorme câncer coletivista. Friedrich List, no século XIX, já dizia que somente onde o interesse dos indivíduos estivesse subordinado ao da nação, haveria desenvolvimento decente. Como se nação tivesse interesse! List foi totalmente contrário ao individualismo de Adam Smith, e colocava a nação como um ente vivo, com desejos e interesses, que justificavam inclusive o sacrifício de uns “simples” indivíduos. Quem saberia dizer quais os interesses da tal nação? Com certeza, os sábios, List incluído. Assim, a glória futura da nação valeria mais que tudo. Hitler não foi lá muito inovador...

Existem outros infinitos exemplos dos males que a mentalidade coletivista gera, mas creio ter deixado claro o ponto. Somente quando os indivíduos forem tratados como um fim em si, como agentes ativos de suas próprias vidas, ainda que influenciados pelas diversas características mencionadas, mas com responsabilidades individuais, o mundo será mais justo. Cada um deve tentar ser feliz à sua maneira, respeitando a liberdade alheia. Devemos ter cuidado com os “sábios iluminados”, que conhecem o caminho “certo”. Os valores e as atitudes individuais são o que importam. Onde nasceu, qual religião pratica, a qual classe pertence, tudo isso me parece completamente secundário, ou pelo menos nenhuma dessas características merece o monopólio da relevância. Fora isso, jamais os fins justificam os meios. Eis o que defende o Liberalismo, na contramão das ideologias coletivistas, quase sempre genocidas. A melhor arma contra a praga do coletivismo é, sem dúvida, a defesa da ampla liberdade individual.

sábado, 26 de abril de 2008

Direito Natural

por Rui Albuquerque, no O Insurgente

A existência de um acervo normativo metajurídico, isto é, que se sobrepõe ao direito positivo, no qual se encontram plasmados os direitos fundamentais dos indivíduos, representa a mais importante limitação ao poder soberano do Estado e a mais eficaz salvaguarda da liberdade. A ideia de que a natureza humana conhece princípios, regras e valores que lhe são inerentes e constantes no tempo e no espaço, e serão merecedores, por isso, da tutela jurídica do direito positivo (que em circunstância alguma os pode pôr em causa), é antiga. Designa-se por «lei» ou «direito natural». Cícero escreveu, n’ A República, que «há uma verdadeira lei, recta razão, conforme à natureza, difundida por todos, constante, eterna (…) não é uma em Roma e outra em Atenas, não é uma hoje e outra amanhã, mas lei única e eterna e imutável, será para todas as nações e para todos os tempos». Esta é uma boa definição de direito natural.

Se Cícero, ao contrário do jusnaturalismo cosmológico e panteísta grego, fundava já em Deus a origem da «lei natural», o jusnaturalismo medieval acentuou essa fundamentação teológica. S. Tomás de Aquino, símbolo máximo do jusnaturalismo católico, considerava a «lei natural» como a participação da «lei eterna» -a razão divina no plano da criação, na razão humana. Graças a ela, o homem propende naturalmente para o bem, para a paz e a verdade. Distinguindo na «lei natural» os «primeiros princípios» e os «segundos princípios», S. Tomás considera que apenas os primeiros, mais proeminentes e fundamentais, são universais e imutáveis, enquanto que os segundos podem ser modificados e de aplicação particular, correspondendo, de algum modo, às variações históricas da moral social. Para todos os efeitos, a «lei humana» derivará da «lei natural», não a desrespeitar, cumpri-la, de modo a almejar a justiça, ela mesmo um reflexo da vontade de Deus.

A laicização do direito natural foi operada pelo racionalismo setecentista e oitocentista, que lhe atribuiu existência própria para além dos planos divinos. Grócio, Pufendorf e Tomásio, apesar de serem cristãos protestantes, não vêem necessidade de recorrer a Deus para fundarem a existência da «lei natural». É célebre a afirmação do último desses três filósofos e juristas, segundo a qual a razão será suficiente para descobrir os preceitos do direito natural, para o que «não contradirei os textos sagrados, apenas prescindirei deles».

Para todos os efeitos, o direito natural foi sempre um forte entrave ao despotismo e ao totalitarismo do poder político. Ele fundamentou, no mundo antigo, a ideia de justiça, e no mundo moderno e contemporâneo a criação de limites ao governo e ao exercício dos seus poderes. Fê-lo por via da proclamação de direitos fundamentais inerentes aos cidadãos de uma comunidade política, consagrados nos textos constitucionais, eles próprios também decorrentes da preocupação de limitar e conter a soberania. São os chamados «direitos fundamentais de primeira geração», que representam, no essencial, o elenco de direitos naturais consagrados pelo liberalismo clássico, a saber: a vida, a propriedade, a tolerância e a liberdade religiosa, a liberdade de expressão, a segurança, a igualdade perante a lei, a imparcialidade da justiça e a igualdade de armas entre as partes. No fim de contas, o que Jefferson consagrou na Declaração de Independência dos EUA, ao escrever que «todos os homens foram criados iguais, foram dotados pelo Criador de certos direitos inalienáveis, que entre estes estão a vida, a liberdade e a busca da felicidade».

O direito natural é, assim, património histórico e filosófico do liberalismo. Já no nosso tempo Murray Rothbard retomaria o tema e entroncaria nele toda a sua teoria da liberdade. Tratava-se (a «lei natural») de uma verdadeira «ciência da felicidade» (uma evidente reminiscência da Declaração de Independência), que servia para aclarar «o que é melhor para o homem – que fins deve prosseguir por serem os mais conformes com a sua natureza e os que melhor tendem a realizá-la». A razão seria o instrumento indicado para alcançar a verdadeira natureza humana («Se o homem tem uma natureza, porque não há-de ser acessível à observação e reflexão racional?») e, através dela, criar uma ética objectiva para o indivíduo e a sociedade humana, baseada em «princípios de justiça absolutos». Do ponto de vista liberal, para além de se fragmentar em direitos individuais absolutos, a «lei natural» resulta, em si mesma, num «conjunto de normas que podem sustentar uma crítica radical à lei positiva em vigor imposta pelo Estado». É o primeiro limite à acção do Estado.

É por isso que os defensores do estatismo são quase sempre adversários da ideia do direito natural. Entre eles, obviamente, Hans Kelsen, o célebre jurista austríaco do século XX, para quem o direito se consubstancia nas normas jurídicas positivas decorrentes da vontade do Estado, e encontra a sua validade em si mesmo, na autoridade do legislador, e não em quaisquer considerações éticas ou morais, menos ainda numa suposta ideia de justiça universal, que Kelsen considera ser uma pura ficção. Não obstante o seu positivismo formalista, nem mesmo Kelsen conseguiu escapar à necessidade de encontrar uma razão primeira para o Direito, a célebre Grundnorm, a «norma fundamental hipotética», que ele situava numa espécie de ius gentium de recorte pouco conciso. Poderia encontrá-lo, a esse conteúdo, por exemplo, em Grócio, para quem o direito das gentes mais não era do que a expressão última do direito natural.

Memórias do Subterrâneo

por Antonio Fernando Borges

Nos anos de juventude, comendo o pão amargo amassado por uma dupla de autores alemães ressentidos e mal-intencionados, nós - os valentes Camaradas - queríamos transformar o mundo à nossa imagem e semelhança. Tudo, sempre, em nome de um suposto... "amor à Humanidade".

Mas éramos (sem saber) incapazes de amar o próximo, no sentido mais simples e verdadeiro da palavra. Entre as proverbiais boas intenções e nossos gestos mesquinhos, espraiava-se o infinito.

Uma cena típica bastaria para ilustrar tamanho descompasso.

Era verão, era a tarde de um sábado ensolarado. Eram os intragáveis anos '70.

Saíamos em grupo da Faculdade, depois de duas horas extracurriculares de leituras marxistas - daquelas que acirram os ânimos dos jovens contra a sociedade em geral e contra a própria família (burguesa!) em particular. No caminho até o ponto de ônibus, cruzamos com dois pedintes, com as mãos estendidas e a cara de fome.

Todos nós passamos por eles de cabeça erguida, com a empáfia de quem conhecia a solução para aquelas "injustiças do capitalismo".

Todos, menos eu. Com o que ainda me restava do sentimento cristão, aprendido na infância, comovi-me subitamente com a cena: pus a mão no bolso e "sacrifiquei" parte do dinheiro reservado para os próximos lanches na cantina do Instituto de Comunicação - e estendi as poucas notas aos mendigos.

Parados alguns passos mais adiante, meus Companheiros me observavam com severidade. E aquele que se fazia de (e até se sentia) nosso Líder, adiantou-se em condenar meu "desvio burguês":

"É assim que você quer ajudar a transformar o mundo, companheiro? Retardando o conflito de classes através dessas atenuantes pequeno-burguesas".

Como um criminoso apanhado em flagrante, ainda esbocei uma reação honesta:

"Eles estavam com fome."

Mas o outro, implacável:

"Como se isso fosse uma justificativa! Será que você ainda não aprendeu que não se trata de casos individuais? Pessoas não contam; pessoas não existem, meu caro. O que existem são as classes sociais!"

Acompanhei o grupo em silêncio, até nosso destino imediato: o ponto de ônibus. Mas todos tinham os olhos sonhadores para o futuro distante: o "paraíso socialista".

(Durante alguns dias, meus companheiros continuaram me olhando desconfiados, sendo que nosso Líder ainda me recomendou algumas "leituras extras", para ajudar a curar meus "desvios de classe".)

A passagem dos anos me afastou desse Reino de Trevas - embora o pesadelo do "outro mundo possível" se encontre parcialmente instalado entre nós.

Dias atrás, no entanto, cruzei com meu ex-Líder, numa rua do Centro. Protegido por uma pilastra (ele não me viu), flagrei-o no instante exato em que negava esmola, atenção e piedade a um morador-de-rua. Espantou-o com um gesto de desdém - e seguiu em frente.

Amar a Humanidade é fácil, dizia Graham Greene, difícil é amar o próximo.

Pelo visto, meu ex-Líder continua acreditando que os homens de carne-e-osso são apenas uma abstração inoperante, ao passo que abstrações aberrantes como "excluídos" e "classes sociais" constituem a única realidade possível.

sexta-feira, 25 de abril de 2008

O culto do Multiculturalismo

por Rodrigo Constantino

Uma cultura só tem importância se for boa para os indivíduos”. (Kwame Anthony Appiah)

Uma das maiores ameaças à liberdade individual atualmente encontra-se no culto do multiculturalismo. Vários autores notaram este risco, entre eles Thomas Sowell, da Escola de Chicago. Em sua coletânea de textos Barbarians Inside the Gates, Sowell lembra que o mundo sempre foi multicultural, por séculos antes de o termo ser cunhado. Tratava-se de um multiculturalismo num sentido prático, diretamente oposto ao que o atual culto dos relativistas culturais prega. Como exemplos, Sowell lembra que o papel onde seu livro foi escrito fora inventado na China, as letras vieram da Roma antiga e os números da Índia, através dos árabes. O autor é um descendente da África, que escrevia enquanto escutava música de um compositor russo.

A razão pela qual tantas coisas se disseminam pelo mundo todo está no simples fato de que algumas coisas são consideradas melhores que outras, e as pessoas desejam o melhor para si. Esta obviedade é justamente o contrário do que o credo do multiculturalismo atual defende, alegando que nada é melhor ou pior, mas “apenas diferente”. Na verdade, as pessoas mundo afora não apenas “celebram a diversidade”, elas escolhem aquilo de sua própria cultura que desejam manter e aquilo que preferem abandonar em prol de algo melhor vindo de fora. Quando os índios americanos, por exemplo, viram os cavalos dos europeus, eles não se limitaram a “celebrar a diferença”, eles começaram a montar em vez de ir andando. À contramão do que o culto do multiculturalismo defende, as pessoas não buscam viver “em harmonia com a natureza”, e sim obter o melhor que puderem. Eis o motivo pelo qual, desde automóveis até antibióticos, os bens demandados se espalharam pelo mundo. Não importa o que os filósofos do multiculturalismo dizem, é isso que milhões de pessoas fazem.

Para Sowell, este tipo de multiculturalismo moderno é uma dessas afetações que algumas pessoas podem se dar ao luxo de ter enquanto estão usufruindo de todos os frutos da tecnologia moderna. Normalmente não são pessoas pobres vivendo em países muito atrasados que bradam sobre as “maravilhas” das diferentes culturas. São “intelectuais” de países desenvolvidos que olham com desdém para os processos que tornam possível a produção de todo tipo de conforto que desfrutam. Uma cultura é, segundo a definição da Enciclopédia Britânica, um padrão integrado de conhecimento humano, crenças e comportamentos que são resultados da capacidade humana de aprendizagem e transmissão de conhecimento para as gerações seguintes. Cultura consiste então em língua, idéias, crenças, costumes, códigos de conduta, instituições, ferramentas, técnicas, rituais, arte, símbolos etc. A cultura de um povo pode evoluir com o tempo. Cultura se aprende. Os relativistas culturais tentam logo acusar de “nazistas” aqueles que conseguem enxergar objetivamente instituições e costumes superiores – ignorando que Hitler falava em superioridade racial dos arianos, algo que seria inato, não aprendido. O conceito de raça humana sequer faz muito sentido. Já estoque de conhecimento, instituições, valores e avanços não só existem e variam muito de cultura para cultura, como uns são bastante superiores a outros. Ou será que alguém realmente acredita que a cultura da Suíça é apenas “diferente” daquela existente no Zimbábue, e não melhor? Será que os costumes de sacrifício infantil praticados pelos incas seriam atualmente vistos como “apenas diferentes” pelos relativistas culturais? Como conciliar isso com a demanda por um código de direitos humanos universais?

Algo inerente aos relativistas culturais, pelo fator contraditório de suas crenças, é o constante uso de dois pesos e duas medidas. Ao mesmo tempo em que relativizam todas as barbaridades provenientes da cultura atrasada que pretendem defender, esquecem o relativismo e partem para a objetividade de julgamento na hora de condenar as culturas que detestam – normalmente as mais avançadas e livres. Assim, cortar o clitóris passa a ser apenas uma “diferença cultural”, como colocar um brinco na filha. Mas o “consumismo” ocidental é algo podre, que deve ser combatido, e não apenas uma “diferença” de valores. Uma cultura que prega a morte de “infiéis” é apenas uma cultura “diferente”, enquanto se um país for se defender dessa ameaça, sua “cultura belicosa” passa a ser repugnante. Os relativistas fingem não perceber que se “tudo vale”, porque nenhuma cultura é superior a outra, então um povo pode alegar ter como valor supremo em sua cultura o extermínio de outras culturas. Com qual critério objetivo um relativista consegue julgar algo, se tudo não passa de “diferenças culturais”? Quando os relativistas culturais alegam, por exemplo, que nenhuma cultura está num estágio inferior e que seus costumes são "apenas diferentes", estão sendo coniventes com a prática nefasta de matar por apedrejamento uma mulher cujo único "crime" foi ter cometido adultério. Queiram ou não, o fato é que os adeptos desse culto do multiculturalismo são cúmplices dessas barbaridades.

O filósofo Kwame Anthony Appiah explicou de forma bastante objetiva os riscos da visão coletivista da cultura, em detrimento ao direito de livre escolha individual. O autor, nascido em Gana, é Ph.D. pela Universidade de Cambridge e lecionou em Harvard e Princeton, além de autor do livro Cosmopolitanism, onde defende que a globalização fez bem às culturas regionais. A globalização não uniformiza, diversifica. A reclusão é que exaure a inspiração. Culturas fechadas estão fadadas ao insucesso. Basta comparar a diversidade nos Estados Unidos, com inúmeras culturas diferentes convivendo lado a lado, com a maior homogeneização de uma Coréia do Norte, isolada do mundo.

A população deve ter a liberdade de escolha de quais produtos culturais deseja consumir. Appiah dá o exemplo das camisetas que os africanos usam, deixando de lado suas roupas coloridas tradicionais. Se as camisetas cumprem a função de cobrir o corpo e são mais baratas, que mal há em deixar as vestes tradicionais para ocasiões especiais apenas? Tirar o direito de escolha dos indivíduos em nome da “preservação cultural” beira o desumano, e normalmente quem pensa assim está longe, no conforto justamente de culturas mais liberais. O mesmo vale para o resto dos produtos existentes. Os indivíduos devem ser livres para decidir qual filme desejam assistir, quais músicas querem escutar ou qual comida pretendem comer. Quanto mais liberdade de mercado, com abertura para diferentes países e culturas, maior o número de opções disponíveis. Appiah chama de “preservacionistas culturais” aquelas pessoas com bom padrão de vida em algum país ocidental, normalmente, que olham para as culturas diferentes e exóticas como algo interessante, bonito, que deveriam ser mantidas para sempre da mesma forma. Mas, como Appiah diz, “se o costume é ruim para o bem-estar de uma grande parcela daquela população, o fato de fazer parte da cultura não é motivo para insistir no erro”.

O foco deve ser o indivíduo e sua liberdade de escolha, não a tribo, a nação ou a cultura. A cultura não é um fim em si, mas um meio para a felicidade dos indivíduos. E cada um deve ser livre para escolher como quer buscar sua felicidade. Eis justamente o que o culto do multiculturalismo deseja impedir.

John Galt’s “Atlas Shrugged” Speech

"The man who refuses to judge, who neither agrees nor disagrees, who declares that there are no absolutes and believes that he escapes responsibility, is the man responsible for all the blood that is now spilled in the world. Reality is an absolute, existence is an absolute, a speck of dust is an absolute and so is a human life. Whether you live or die is an absolute. (...)

You, who are half-rational, half-coward, have been playing a con game with reality, but the victim you have conned is yourself. When men reduce their virtues to the approximate, then evil acquires the force of an absolute. (...) When they yell that it is selfish to be certain that you are right, you hasten to assure them that you're certain of nothing. When they shout that it's immoral to stand on your convictions, you assure them that you have no convictions whatever. When the thugs of some socialist country snarl that you are guilty of intolerance, because you don't treat your desire to live and their desire to kill you as a difference of opinion — you cringe and hasten to assure them that you are not intolerant of any horror.

There are two sides to every issue: one side is right and the other is wrong, but the middle is always evil. The man who is wrong still retains some respect for truth, if only by accepting the responsibility of choice. But the man in the middle is the knave who blanks out the truth in order to pretend that no choice or values exist, who is willing to set out the course of any battle, willing to cash in on the blood of the innocent or to crawl on his belly to the guilty, who dispenses justice by condemning both the robber and the robbed to jail, who solves conflicts by ordering the thinker and the fool to meet each other halfway. In any compromise between food and poison, it is only death that can win. In any compromise between good and evil, it is only evil that can profit. (...)

You have reached the blind alley of the treason you committed when you agreed that you had no right to exist. Once, you believed it was 'only a compromise': you conceded it was evil to live for yourself, but moral to live for the sake of your children. Then you conceded that it was selfish to live for your children, but moral to live for your community. Then you conceded that it was selfish to live for your community, but moral to live for your country. Now, you are letting this greatest of countries be devoured by any scum from any corner of the earth, while you concede that it is selfish to live for your country and that your moral duty is to live for the globe. A man who has no right to life, has no right to values and will not keep them."

Invertendo fatos

por José Nivaldo Cordeiro

De há muito os bons economistas, aqueles que sabem que o mal por excelência é a ingerência do Estado na economia, seja a que pretexto for, têm advertido que a economia mundial, particularmente a norte-americana, estava vivendo ilegitimamente da expansão monetária artificial. O longo ciclo de expansão econômica – que pode ser apropriadamente chamada de inflacionária – se manteve porque coincidiu que dois auspiciosos fatos, a impulsionar de forma sadia a economia: de um lado a enorme elevação na produtividade, trazida pelas inovações tecnológicas associadas à informática e às telecomunicações e, do outro, a entrada da China como grande parceiro na economia mundial. A China trouxe uma matéria prima preciosa, mão-de-obra barata e disciplinada, utilizando tecnologias sofisticadas. Inundou o mercado mundial de produtos baratos e bons.

Mas parece que o sonho de expansão continuada acabou-se, pelo que se viu ontem nos mercados. Basicamente a causa da crise é a expansão monetária desenfreada, especialmente a dos EUA. E qual a solução dos magos economistas de esquerda que controlam os bancos centrais, cá e também lá? Mais oferta monetária, mediante redução da taxa de juros. Gasolina lançada para apagar incêndio. Sempre que há crise os burocratas do Estado tendem a ampliar seus poderes, usando velhas idéias esquerdistas de corte keynesiano e marxista, e sempre conseguem agravar tudo. Antes como agora. Se a economia mundial caminhar para algo semelhante a 1929 será porque os governos foram além dos seus chinelos e os burocratas meteram a mão onde não deviam meter.

Os remédios para a crise que se avizinha são apenas dois: elevação da taxa de juros e redução do Estado, da despesa e da receita. Nunca foi tão fácil administrar a saída da crise, bastando para isso reduzir o monstro estatal e mandar para casa uma boa metade dos burocratas metidos a sabichões. E pôr sua clientela eleitoral parasita, pendurada no espúrio welfare state, a trabalhar, como deve ser. É preciso reduzir o poder discricionário dessa gente, em todos os países.

Por isso para mim não foi surpresa ler o besteirol escrito por Eleonora de Lucena na Folha de São Paulo de hoje (23/01), ela que é editora-executiva do jornal. A Folha congrega em suas hostes a fina-flor do esquerdismo Zona Sul, essa gente insossa que, rica e atéia, pensa que tem as chaves da engenharia social para curar o mundo e se sente à vontade para culpar o capitalismo pela existência do mal:

Já foi dito que uma das funções do Estado moderno é defender o capitalismo de ações dos capitalistas. É precisamente o que acontece agora. O Estado - que organiza e agencia os interesses dos grupos dominantes -é chamado a agir assim nas crises. Afinal, é preciso que alguém assuma o controle da situação. Que possa atuar para além dos bônus anuais, do curto prazo, dos ganhos dos rentistas”.

Isso é o papo keynesiano mais ridículo. O que temos é que defender, não apenas os capitalistas, mas toda a gente, da burocracia estatal. Esses economistas de esquerda são uma espécie de sacerdotes que pensam ter as chaves dos mistérios para gerenciar a sociedade. Não têm, não sabem o que fazer, não têm como decifrar os augúrios de suas próprias incúrias. O que têm é a pretensão de eliminar a lei da escassez pela expansão infinita da oferta de moeda. Ora, esta só pode gerar uma coisa: inflação. E esta última uma outra coisa: recessão. Numa palavra, estagflação.

A editora-chefe foi muito (in)feliz ao resumir tudo. Quando a economia se expande essa gente se credita o mérito. Não é o industrial, o agricultor, o comerciante e nem o banqueiro, com todos os seus empregados, que trabalham duro e de forma inteligente para prosperar a si mesmos e a toda gente que são os autores da bonança. Não, a expansão teria se dado pelo passe de mágica desses parasitas. E, quando vem a recessão provocada por eles, culpam os ditos “capitalistas”, os que trabalham e que agora terão que amargar perdas, dívidas impagáveis, produtos invendáveis, ruína econômica, demissão de empregados, todas as tragédias associadas à estagflação. Soa os que verdadeiramente pagam a conta.

Só existe um culpado por tudo isso, deixemo-lo claro: o Estado agigantado, tocado pelos parasitas burocratas.

A editora-chefe tem razão: Afinal, é preciso que alguém assuma o controle da situação Esse alguém é quem trabalha, não os parasitas do Estado. Não sei como será feito, só sei que terá que ser feito.

Talvez essa grande crise que se avizinha seja o corretivo necessário para finalmente a humanidade redescobrir que não se pode tolerar parasitas, é preciso reduzir impostos, gastos e sobretudo o poder do Estado. Fora do Estado mínimo não haverá salvação.

quinta-feira, 24 de abril de 2008

Um paradigma totalitário

por Roberto Romano
Revista Cult

Ao contemplar a Virgem nas artes, medievais ou quando surgia a Renascença, notamos a desproporção entre o seu tamanho e o dos pecadores. Corpos trêmulos abrigam-se sob a mulher que esmaga o mal. O pagamento do pecado é a morte (Rom 6,23), mas a salvação se oferece, gratuita. Cada um dos fiéis encontra em Maria a sua portapara deixar o vale de lágrimas. Os cristãos estão no mundo, mas caminham para o invisível. A coroa de Maria garante o triunfo sobre o Inferno. No culto à Virgem o tempo dos cristãos vai do agora ao instante da morte. Desprotegidos em termos seculares, os cristãos submetem-se aos barões ou peregrinam pelos centros onde Maria os reconforta. Os conflitos entre Estado nacional e Igreja centralizada surgem ao redor do mando soberano. Segundo G. Duby, “a coroação de Maria na catedral celebra (…) solenemente, a soberania da Igreja romana”. Com o tema da Virgem rainha e mãe, o papa Inocêncio III a reivindicava para a soberania plena da Igreja.

Tendo na lembrança os enunciados acima, examinemos a Virgem enquanto figura do poder. Na pintura e nas doutrinas religiosas não existem pessoas isoladas, todas se colocam sob o manto de Maria/Igreja, o que lhes dá segurança e certeza da salvação. Na Virgem da Misericórdia, leigos e clérigos são protegidos igualmente pelo manto soberano da Mãe de Deus. As batalhas entre a Santa Sé e os reis conduzem a pintura para a propaganda política. Recordemos a guerra entre o papa e os reis. No texto Sicut universitatis conditor (1198), Inocêncio III proclama que “O Criador do universo estabeleceu duas grandes luzes no firmamento dos céus; a maior para iluminar o dia, a menor para dirigir a noite. Ele fez o mesmo para o firmamento da Igreja universal, da qual falamos como se fosse um céu, e definiu duas grandes dignidades; a maior para proteger e governar as almas (os dias), a menor para proteger e governar os corpos (as noites). Tais dignidades são a autoridade pontifical e o poder real. A lua retira sua luz do sol, sendo inferior a ele em tamanho e qualidade, em posição bem como em eficácia. O poder real deriva sua dignidade da autoridade pontifícia: e quanto mais ele escapa da esfera daquela autoridade, menos luz o adorna; quanto mais dela se aproxima, mais aumenta seu esplendor”.

Nas escaramuças entre os poderes surge o Policraticus. O poder real, afirma Jean Salisbury, se quiser escapar ao label da tirania, deve ouvir e obedecer a Igreja. E vem a profecia: o Estado exigirá para si a força física ilimitada. O corpo social, no Policraticus, é relevante porque a dualidade entre os poderes — espiritual e secular — começa a se definir. Se a tarefa do príncipe é manter a boa saúde do corpo estatal, o sacerdote tem a missão de aconselhar neste labor, como se fosse a alma da República. Caso o rei abuse do poder e desobedeça aos mandamentos religiosos, mergulhando a comunidade na injustiça, a sua morte é correta e abençoada. No imaginário religioso foram geradas imagens contraditórias do soberano laico, da monstruosa à respeitável. Mas elas não se recobrem, deixam espaços para os cidadãos decidirem sobre a obediência hegemônica, a religiosa ou a secular. Igreja ou Estado não integra os indivíduos numa unidade sem fissuras. As imagens da Virgem, signos da soberania eclesiástica, mostram o quanto o poder legítimo protege os súditos até a hora da morte. Com a secularização do Estado e da cultura, o indivíduo só tem segurança quando preso ao corpo estatal.

Com Hobbes o cidadão perde o direito de seguir a consciência religiosa contra o poder. A causa deste veto encontra-se na ficção do pacto, no qual todos os indivíduos contratam a sujeição comum ao soberano, sendo autores do Leviatã. Ir contra este último significa destroçar a si mesmo, o que seria ilógico na óptica assumida pelo filósofo. “Constituído o Estado, a personalidade inteira do povo passa sem reserva à do soberano, seja esta a personalidade física de um indivíduo, seja ela a personalidade artificial de uma Assembléia. Só na última e por ela o povo é pessoa, enquanto é apenas uma simples multidão sem ela e, portanto, não pode ser pensado como sujeito de qualquer direito diante do soberano”. A principal renúncia, no pacto, determina que os indivíduos não têm direito de professar a sua religião como lhes interessa.

Hobbes investe contra o universo cristão, cuja doutrina afirma que a natureza participa da sobrenatureza divina, o fundamentava na dualidade dos poderes, o secular e o religioso. O pacto ocorre no mundo e reúne a todos e a cada um. Se todos se sujeitam a todos, os que quiserem retornar à vida anterior ao pacto serão esmagados, mesmo que sejam muito fortes. E temos a imagem célebre do Leviatã para definir o nexo entre as pessoas e o coletivo.



No Leviatã, os seres humanos integram o corpo do gigante sem nenhum intervalo, dando-se a unidade absoluta das partes no corpo do Estado. No caso da Virgem, percebe-se não apenas a diferença do tamanho (Maria imensa, os súditos pequenos) mas os corpos não se fundem. Tal distância corresponde à transcendência do poder religioso. Maria intercede pelos homens, mas seu corpo não é formado por eles. O soberano hobbesiano não depende de nenhuma transcendência porque expressa de imediato a vontade dos que o constituem e conhece diretamente a vontade coletiva. Não existe intervalo entre o coletivo e cada um dos que assumiram o pacto de submissão. E se por acaso surgir alguma fissura entre ambos, o indivíduo que a produz é réu de traição a si mesmo, porque deseja o pacto. O poder é imanente em termos absolutos, o que simplifica ou mesmo suspende a questão da legitimidade. O Leviatã protege os indivíduos deles mesmos. Ou cada um aceita integrar-se nele, ou assume a guerra primitiva que põe a sua própria existência em risco perene. Cada um, a partir do pacto de submissão, sente e pensa como um “nós” que domina as veleidades de autonomia e independência individual.

Horst Bredekamp, estudioso do fascínio pela máquina que assalta a alma ocidental, escreveu bela análise sobre o Leviatã, protótipo do poder mecânico onde se integram os indivíduos num coletivo finito, contrário à transcendência religiosa. Em Estratégias Visuais de Thomas Hobbes, ele expõe a gênese das imagens utilizadas pelo filósofo e as suas fontes nas teorias ópticas, na retórica e nas tradições místicas. Seu mote encontra-se nas palavras de Hobbes: os homens podem prever a sua própria preservação e uma vida com maior contentamento. Eles só podem fugir da guerra que surge das paixões “quando não existe um poder visível para lhe impor respeito” (Leviatã, segunda parte, Of Commonwealth).

Hobbes, argumenta Bredekamp, inicia a moderna teoria do Estado a partir da óptica, matéria que estudou durante anos e inseriu em sua obra principal com figuras tão cuidadosamente escolhidas que resultam de estratégias visuais. O autor também observa o De corpore (1655), onde Hobbes desenvolve sua teoria das marcas e sinais. As marcas ajudam a memória, os sinais definem-se por sua publicidade. Eles comunicam assuntos e podem dar início a ações. Bredekamp dá como exemplo de um sinal público o colapso das Torres Gêmeas em 11 de setembro. O sinal do Estado encontra-se na unidade. O contrato que o forma é mais do que um acordo, pois trata-se da união real de pessoas (in personam unam vere omnium unio). Nele, as vontades são reduzidas a uma só.

Com base nessa imanência absoluta do Estado, fortificaram-se na modernidade teorias e práticas cujo paroxismo ocorreu nos Estados fascistas e estalinistas do século 20. Sei muito bem que Hobbes não tem culpa pela radicalização de seu protótipo político. Ele não precisaria mesmo ser chamado ao Tribunal de Nuremberg a exemplo de seu admirador, Carl Schmitt. Mas ao ver, hoje, militantes raivosos atacarem a honra e a dignidade dos que se opõem ao “seu” partido, ao “seu” governo, ao “seu” guia infalível, recordo o refrão que unificou multidões brasileiras em data recente. E assim o traduzo: “Com o Leviatã ou sem o Leviatã, todos nós somos o Leviatã.” Forma bem tosca de verter uma tese violenta: “O Estado é Lula.” Daí as críticas a ele endereçadas serem assumidas como crime de lesa-majestade. Daí o palavrório sobre conspirações de elites, as quais, no entanto, festejam noite e dia a nossa cópia de rei absoluto. Uma advertência se impõe, no entanto: entre os corruptos da agremiação política e os membros “éticos”, o nexo é de corporeidade comum. Uma estrutura somática assim, monstruosa, permite os piores abusos, porque o membro pérfido e tirânico é automaticamente defendido pelos demais. “Comunhão negra dos santos”, disse Merleau-Ponty sobre o maquiavelismo estalinista. Corretas palavras.

quarta-feira, 23 de abril de 2008

Individualismo, coletivismo e egoísmo

por Percival Puggina

Para o individualismo, uma de suas virtudes consiste em extrair do egoísmo os impulsos do interesse próprio para estimular as atividades econômicas. Entendem seus pensadores que as necessidades humanas são mais plenamente atendidas quando todos buscam suas conveniências afanosa e irrestritamente. Note-se que a experiência o confirma: as pessoas tendem a se dedicar com muito maior afinco ao que pessoalmente lhes convém.

Para o coletivismo, ao contrário, o interesse próprio precisa ser eliminado como condição indispensável a que o interesse coletivo prevaleça. A busca egoística das conveniências individuais, afirmam os coletivistas, estabelece a prevalência dos mais fortes sobre os mais débeis com graves danos à justiça e à harmonia social. Também a experiência mostra ser verdadeiro: na ausência de limites e controles há um claro prejuízo dos mais fracos.

Como admitir-se que duas noções antagônicas possam estar corretas? Onde está, afinal, a razão? Ela não está em qualquer das duas (como revelam as práticas individualistas e coletivistas). O fato de uma e outra fazerem afirmações pontuais corretas não significa que dêem origem a doutrinas que também o sejam. Para encontrar-se a verdade é preciso reconhecer que a pessoa humana é um ser ao mesmo tempo individual e social e que o bem de uma sociedade e de seus membros não pode ser atendido por uma ordem que desconheça essa dupla condição. Assim, o Estado não existe para garantir os espaços do egoísmo nem para extinguir o interesse individual. Nem, menos ainda, para nos submeter a um coletivo dominante e paralisante porque os seres humanos não somos abelhas, formigas ou cupins. Temos razão, vontade e liberdade.

Cabe ao Estado, portanto, atuar no sentido de que o interesse de cada um sirva ao bem comum, promovendo relações sociais solidárias. Produzir isso é uma das elevadas funções da atividade política. Retrucava-me alguém, dias atrás: o ser humano é naturalmente egoísta. E eu complementei: e é, também, naturalmente comodista, naturalmente hedonista, naturalmente uma porção de coisas de que não convêm, o que não significa que no confronto natural entre os vícios e as virtudes se deva deixar dominar por aqueles em detrimento destas.

É bom saber, por fim, que assim como o individualismo estimula o egoísmo de cada um, o coletivismo - como a história, amplamente, demonstrou - organiza esse mesmo egoísmo em modelos políticos totalitários. Noutras palavras, embora individualismo e coletivismo sejam dois equívocos, o último resulta infinitamente mais danoso do que o primeiro porque no conjunto de uma sociedade, as forças resultantes do egoísmo individual, em muitos casos, por serem opostas, se anulam. Já no coletivismo, elas se fazem convergentes originando as opressões e o totalitarismo impostos pelo coletivo dominante.

A grande farsa do Aquecimento Global

O Canal 4 britânico produziu um documentário devastador intitulado "A Grande Fraude do Aquecimento Global". Ele não foi, ao que parece, exibido por nenhuma das redes de televisão nos EUA. Mas, felizmente, ele está disponível na Internet.

As melhores soluções são sempre as do mercado

por João Luiz Mauad em 22 de abril de 2008
© 2008 MidiaSemMascara.org

“Biofuels might play an important role in addressing GHG emissions in the transport sector.”
(IPCC/ONU AR4/SPM – maio/2007)

“Producing biofuels today is a crime against humanity.”
(Jean Ziegler – FAO/ONU – abril/2008)

A recente escalada dos preços das commodities alimentícias – com o conseqüente alvoroço por ela desencadeado – torna esta uma excelente oportunidade para um debate mais profundo em torno de questões econômicas importantes, porém geralmente distorcidas pelo rolo compressor do discurso ambientalista e politicamente correto.

O primeiro ponto a destacar é a influência nefasta que a paranóia do aquecimento global já começa a produzir sobre os destinos da nossa civilização, conduzida pelas mãos sempre ávidas, mas nem sempre escrupulosas, do intervencionismo estatal. Gerada no ventre da quimera ambientalista, uma nova onda de planificação econômica se levanta, criando soluções mágicas e panacéias várias, sob o olhar tenso e ansioso da opinião pública.

O exemplo mais didático disso é o dos chamados biocombustíveis. Apoiados no forte apelo político da guerra contra as mudanças climáticas e, por extensão, contra o monstro dos combustíveis fósseis, políticos e burocratas, mundo afora, passaram a estimular – pela via dos subsídios e benefícios fiscais – a utilização em larga escala dos biocombustíveis, transformando-os na solução redentora para o problema da energia.

Em maio do ano passado, o famigerado quarto relatório do IPCC (leia-se ONU) trazia uma recomendação enfática para o uso, em larga escala, dessa panacéia. Em pouco tempo, e graças à disseminação de incentivos governamentais espúrios ao livre mecanismo de oferta e demanda no mercado, boa parte do agronegócio, espalhada pelos cinco continentes, deixou de lado a lavoura para fins alimentícios e voltou-se para a dita “agricultura energética”. Tudo isso justamente no momento em que a entrada da China no mercado global de commodities fazia prever um aumento significativo na demanda de alimentos para consumo humano.

Era fácil prever o que aconteceria. Até mesmo o provecto ditador cubano deu a receita para o desastre, assim que o presidente Bush resolveu estimular a produção de etanol de milho na maior economia (e maior celeiro) do planeta. Era evidente que a redução da oferta de milho (desviada para os biocombustíveis) e outros grãos (cuja área plantada foi substituída pelo plantio subsidiado do milho) faria o preço dessas commodities disparar e tornaria a vida dos mais pobres mais difícil. Mas políticos e burocratas são, por sua própria natureza, arrogantes, acham que têm a solução para quaisquer problemas, sejam eles econômicos ou sociais. Além disso, a visão de longo prazo nunca foi mesmo o forte dessa gente, cujo horizonte geralmente só vai até a próxima eleição.

Não surpreende, portanto, que, na última semana, menos de um ano após a divulgação do relatório do IPCC que recomendava o uso dos famigerados biocombustíveis, um alto comissário da ONU, Sr. Jean Ziegler, venha a público para desmentir a própria instituição onde trabalha, dizendo ao mundo que “a produção de biocombustíveis é um crime contra a humanidade”. Seria cômico, se não fosse trágico...

(Um parêntese importante: não por acaso, os “verdes” e assemelhados – mentores e comparsas do senhor Ziegler - que hoje falam em “crime contra a humanidade” são praticamente os mesmos que, além de outrora incentivarem o uso de combustíveis orgânicos, sempre se colocaram contra a mecanização do campo, o uso de fertilizantes e inseticidas químicos ou sementes geneticamente modificadas. São os mesmos que empunham as bandeiras do MST e vituperam contra o agronegócio no Brasil. Em resumo, são os mesmos cujas políticas retrógradas que defendem fazem com que a produtividade média da agricultura “orgânica” na África ou na América Central seja praticamente 1/10 da norte-americana.)

É o que dá deixar decisões que afetam milhões de pessoas nas mãos de meia dúzia de burocratas, principalmente quando sujeitos ao proselitismo ambientalista e ao lobby voraz de empresários. Um dia, eles “acham” que descobriram o Ovo de Colombo. Quando as conseqüências de suas desastradas decisões começam a aparecer, essa mesma descoberta já se transforma num “crime contra a humanidade”. Oportunistas e conhecedores da memória curta e da falta de informação da opinião pública, ainda aproveitam para pôr a culpa em quem? Nos especuladores e na ganância do mercado, é claro. É infalível a estratégia.

Malgrado o susto que isso possa causar num primeiro momento, entretanto, o aumento dos preços das commodities era uma reação absolutamente previsível por parte do mercado e, de todo modo, indispensável para que as coisas voltem, num futuro próximo, aos seus devidos lugares. Senão, vejamos.

A primeira lei da economia diz que recursos e fatores de produção são escassos. Dessa lei, deriva outra, que nos fala de um tal custo de oportunidade. Segundo esta última, a utilização de recursos numa determinada empreitada impede que eles sejam usados em qualquer outra. Assim, a terra, as sementes, as máquinas, o trabalho humano, os fertilizantes, o capital e tudo mais necessário para se produzir um determinado produto, não poderá ser utilizado na produção de qualquer outro. Logo, a escolha do agricultor pela produção de mamona, por exemplo, automaticamente exclui qualquer possibilidade de, utilizando os mesmos fatores, produzir alimentos para consumo humano ou animal.

É exatamente isso que tem acontecido com o milho, grão utilizado nos EUA para a produção de etanol e que vem ocupando cada vez mais lavouras, antes destinadas a outras culturas, como soja, trigo e algodão. De acordo com o jornal O Estado de São Paulo, a demanda de milho para a produção de etanol foi de 40,7 milhões de toneladas na safra de 2005/06; 53,8 milhões em 2006/07; 81,3 milhões em 2007/08 e estima-se que atinja os 104 milhões na safra 2008/09. Não surpreende, portanto, que a área plantada de milho tenha crescido nada menos que 19%, só na safra 2007/08, segundo dados do Departamento de Agricultura (USDA) daquele país. Com o aumento da demanda interna, os americanos deixaram de exportar, no mínimo, 50 milhões de toneladas de milho, fazendo com que o preço do produto disparasse no mercado internacional.

Ora, enquanto os subsídios para a produção do etanol forem atrativos e a rentabilidade dos agricultores for maior ao vender seu produto para a fabricação do combustível do que para o consumo humano e animal, não haverá jeito. Quando, porém, os preços das commodities no mercado subir a tal ponto que torne menos rentável a produção de etanol do que de alimentos, não tenham dúvida de que a oferta voltará com força. Esse fato costuma acontecer no Brasil recorrentemente. Graças à política de preços mínimos para o álcool carburante, os produtores de cana-de-açúcar têm a garantia de uma rentabilidade mínima para a produção do combustível. Basta, entretanto, que os preços do açúcar subam no mercado internacional, para que comece a faltar álcool por aqui. É simples: o produtor vende para quem lhe paga melhor.

Mas a alta dos preços tem ainda uma outra virtude: provavelmente fará aumentar os investimentos na produção e comercialização de grãos para alimentação, o que ajudará, a médio prazo, a equilibrar os volumes de oferta e demanda. Qualquer investidor está atento aos sinais emitidos pelo mercado e sempre procurará antecipar-se a ele. Voltemos, por exemplo, ao caso do milho: desde que o presidente Bush anunciou os subsídios para a produção de etanol a partir deste grão, do qual os EUA são os maiores produtores, a área plantada do mesmo, no Brasil, já aumentou sensivelmente. Só na safra 2007-08, esse crescimento foi de 8%, segundo dados do Ministério da Agricultura.

Como se vê, quem melhor sabe o que produzir, como produzir, quanto produzir e como produzir – da forma mais eficiente – é o produtor, guiado pelo infalível mecanismo de preços livres do mercado, que por sua vez é comandado pelas demandas dos consumidores. Se os políticos e os burocratas deixassem a sua arrogância e "sapiência” de lado e entendessem isso, o mundo economizaria bilhões, jogados fora todo ano, graças às nefastas intervenções dos governos (aí incluída a maldita ONU) nesse processo.

quarta-feira, 9 de abril de 2008

O cisma: duas éticas dividindo o mundo ocidental

por Edward Griffin

PALAVRAS SEM SENTIDO

Há muitas palavras usadas correntemente hoje em dia para se descrever as ideologias políticas. Dizem que existem conservadores, social-democratas [liberals], liberais [libertarians], direitistas, esquerdistas, socialistas, comunistas, trotskistas, maoístas, fascistas, nazistas; e, se isso já não fosse suficientemente confuso, agora temos neo-conservadores, neo-nazistas e neo-seja lá o que for. Quando querem saber qual a nossa ideologia política, esperam que escolhamos uma dessas palavras. Se não tivermos uma opinião política ou se tememos fazer uma má-escolha, então agimos com cautela e dizemos que somos moderados- o que adiciona ainda mais uma palavra à lista. No entanto, nem mesmo uma pessoa em cada mil consegue definir claramente as ideologias que essas palavras representam. Elas são usadas sobretudo como rótulos para criar uma aura de bondade ou maldade, dependendo de quem utiliza as palavras e quais emoções elas suscitam em sua mente.

Por exemplo: como definir de forma exata o que é um conservador? Uma resposta comum seria que um conservador é uma pessoa que quer conservar o status quo e se opõe a mudanças. Mas a maioria das pessoas que se auto-denominam conservadoras não são favoráveis a se conservar o atual sistema de altos tributos, gastos deficitários, expansão dos programas sociais [expanding welfare], complacência para com criminosos, ajuda internacional [foreign aid], expansão do governo ou quaisquer outros símbolos que representam a ordem atual, os baluartes zelosamente defendidos do que se pode chamar de social-democracia [liberalism]. Os social-democratas de ontem são os conservadores de hoje, e os que se chamam de conservadores são na verdade os radicais, já que querem uma mudança radical do status quo. Não é de se admirar que a maioria dos debates políticos soe como se tivesse surgido na Torre de Babel. Cada um fala uma língua diferente. As palavras podem soar familiares, mas cada falante e ouvinte tem suas próprias definições pessoais.

Segundo a minha experiência, a maioria dos desentendimentos termina quando ambas as partes compreendem as definições. Para a surpresa daqueles que pensavam ter posições ideológicas inconciliáveis, eles geralmente descobrem que, na realidade, concordam quanto às questões básicas. Sendo assim, para lidar com essa palavra, coletivismo, devemos primeiramente fazer uma limpeza. Se vamos tentar compreender os programas políticos que regem o planeta hoje, não podemos permitir que nosso raciocínio seja contaminado pela carga emocional do vocabulário ultrapassado. Talvez vocês se surpreendam ao descobrir que a maioria dos grandes debates políticos de hoje em dia- pelo menos no mundo ocidental- pode ser dividida em somente dois pontos de vista. Todo o resto é só lero-lero. Em geral, centram-se somente na questão de se uma ação em particular deveria ser praticada, mas o conflito real não tem nada a ver com o mérito da ação e sim com os princípios, o código de ética que justifica ou proíbe tal ação. É uma competição entre a ética do coletivismo de um lado e a do individualismo do outro. Essas palavras é que realmente significam alguma coisa e descrevem um cisma moral que divide todo o mundo ocidental. (1)

A única coisa que coletivistas e individualistas têm em comum é que a grande maioria deles é bem intencionada. Querem a melhor vida possível para suas famílias, seus compatriotas, e para a humanidade. Querem prosperidade e justiça para o homem comum. O desacordo está em como conseguir essas coisas.

Estudei a literatura coletivista por mais de quarenta anos e, depois de algum tempo, percebi que havia certos temas recorrentes que considero serem os seis pilares do coletivismo. Se forem colocados de cabeça para baixo, são também os seis pilares do individualismo. Em outras palavras, há seis conceitos principais sobre relações sociais e políticas e, no que se refere a cada um deles, coletivistas e individualistas têm pontos de vista opostos.

1. A NATUREZA DOS DIREITOS HUMANOS

O primeiro desses conceitos tem a ver com a natureza dos direitos humanos. Coletivistas e individualistas concordam em considerar os direitos humanos importantes, mas diferem quanto à importância e sobretudo quanto ao que se presume ser a origem desses direitos. Só há duas possibilidades nesse debate: ou os direitos do homem são intrínsecos ao seu ser, ou são extrínsecos, o que significa que ou ele os possui desde o nascimento ou os recebeu mais tarde. Em outras palavras, ou são hardware ou são software. Os individualistas acreditam que sejam hardware. Os coletivistas acreditam que sejam software.

Se alguém concede esses direitos ao indivíduo depois que ele nasce, então quem tem o poder de fazer isso? Os coletivistas acreditam que essa seja uma função do governo. Os individualistas ficam apreensivos com essa posição porque, se o estado tem o poder de conceder direitos, também tem o poder de retirá-los, e esse é um conceito incompatível com a garantia da liberdade individual.

A perspectiva do individualismo foi expressa claramente na Declaração de Independência dos Estados Unidos, que dizia:

“Consideramos estas verdades como evidentes por si mesmas, que todos os homens são criados iguais, dotados pelo Criador de certos direitos inalienáveis, entre os quais estão a vida, a liberdade e a busca da felicidade. Que a fim de assegurar esses direitos, governos são instituídos entre os homens...”

Nada poderia ser mais claro. “Direitos inalienáveis” significa que são um bem natural de cada um de nós desde o nascimento, não concedido pelo estado. A finalidade do governo é...

“...não conceder direitos, mas assegurá-los e protegê-los.”

Em contraste com essa posição, todos os sistemas políticos coletivistas abraçam a perspectiva oposta, de que os direitos são concedidos pelo estado. Isso inclui os nazistas, fascistas e comunistas. É também um princípio basilar das Nações Unidas. O Artigo 4º do Pacto Sobre os Direitos Econômicos, Sociais e Culturais da ONU diz:

“Os Estados Partes no presente Pacto reconhecem que, no gozo dos direitos outorgados pelo Estado,... o Estado pode submeter esses direitos somente àquelas limitações determinadas na forma da lei...”

Repetindo: se aceitarmos que o estado tem o poder de conceder direitos, temos também de concordar que ele tem o poder de os retirar. Atente para a redação do Pacto da ONU. Depois de proclamar que os direitos são concedidos pelo estado, ele diz que esses direitos podem estar sujeitos a limitações “determinadas na forma da lei”... Em outras palavras, os coletivistas da ONU acreditam que nos outorgam nossos direitos e, quando estiverem prontos para retirá-los, tudo o que precisarão fazer será aprovar uma lei que lhes autorize a fazer isso.

Compare-o à Carta de Direitos [Bill of Rights] da Constituição Americana. Ela diz que o Congresso não poderá aprovar nenhuma lei que restrinja o direito à liberdade de expressão, de religião, de reunião pacífica, de porte de armas, etc., sem citar nenhuma exceção determinada na forma da lei, e sim [que] nenhuma lei [poderá fazê-lo]. A Constituição incorpora a ética do individualismo. A ONU incorpora a ética do coletivismo, e essa é uma grande diferença!

2. A ORIGEM DO PODER DO ESTADO

O segundo conceito que diferencia o coletivismo do individualismo tem a ver com a origem do poder do estado. Os individualistas acreditam que um governo justo deriva seu poder não da conquista e subjugação dos seus cidadãos, mas do consentimento livre dos governados. Isso significa que o estado não pode ter nenhum poder legítimo a não ser que o receba de seus cidadãos. Uma outra forma de dizer isso é que os governos podem fazer somente aquilo que seus cidadãos tenham o direito de fazer. Se os indivíduos não tiverem o direito de praticar um certo ato, então eles não podem conceder esse poder aos seus representantes eleitos. Não podem outorgar o que não possuem.

Usemos um exemplo extremo. Digamos que um navio tenha afundado em uma tempestade e três homens exaustos estejam lutando pela sobrevivência em alto mar. De repente, eles se deparam com uma bóia. Ela foi projetada para manter somente uma pessoa boiando, mas, através de uma cautelosa cooperação, ela pode manter dois deles boiando. Entretanto, quando o terceiro homem agarra a bóia, ela se torna inútil, e todos os três, mais uma vez, ficam à mercê do mar. Eles tentam revezar: um fica na água enquanto os outros dois se seguram à bóia. Depois de umas poucas horas, nenhum deles tem força suficiente para continuar. Aos poucos, a verdade nua e crua fica clara: a não ser que um deles seja retirado do grupo, todos os três irão se afogar. O que esses homens deveriam fazer?

A maioria das pessoas diria ser justificável que dois desses homens dominassem o terceiro e o jogassem para fora. O direito à sobrevivência é supremo. Tirar a vida de outrem, por mais terrível que seja o ato, é moralmente justificado se for necessário para salvar sua própria vida. Isso é certamente verdade quanto ao atos individuais, mas e quanto aos atos coletivos? Em que situação dois homens têm o direito de se mancomunar contra um terceiro?

O coletivista responde que dois homens têm um direito maior à vida porque eles superam em quantidade um terceiro. É uma questão de matemática: O bem maior para o maior número. Isso torna o grupo mais importante que o indivíduo e justifica que dois homens forcem um terceiro a sair da bóia. Há uma certa lógica nesse argumento, mas, se simplificarmos ainda mais o exemplo, veremos que, embora a ação possa ser correta, ele foi justificada pela razão errada.

Digamos, agora, que haja somente dois sobreviventes- eliminamos assim o conceito de grupo- e digamos também que a bóia pode manter somente um nadador, e não dois. Essas condições seriam como encarar um inimigo no campo de batalha. É matar ou morrer. Somente um pode sobreviver. Estamos lidando agora com a oposição entre o direito à sobrevivência de cada um dos indivíduos, e não há nenhum grupo mitológico para confundir a questão. Nessa condição extrema, é claro que cada pessoa teria o direito de fazer o que bem entendesse para preservar sua própria vida, mesmo que isso acarretasse a morte do outro. Alguns podem argumentar que seria melhor sacrificar a própria vida por um estranho, mas poucos diriam que não fazer isso seria errado. Logo, negar a vida aos outros vem do direito do indivíduo de proteger sua própria vida. Não é necessário o assim chamado grupo para sacramentá-lo.

No caso original, dos três sobreviventes, a justificativa para negar a vida a um deles não vem do voto da maioria, mas do direito individual e autônomo à preservação da própria vida. Em outras palavras, qualquer um deles, agindo sozinho, estaria justificado ao agir assim. Eles não recebem esse poder do grupo. Quando nós contratamos a polícia para proteger a nossa comunidade, nós estamos somente pedindo para que ela faça o que nós mesmos temos o direito de fazer. O uso da força física para proteger nossas vidas, nossa liberdade, nossa propriedade é uma função legítima do governo pois esse poder deriva das pessoas enquanto indivíduos. Não advém do grupo [nota excluída por se referir a trecho não traduzido].

Um outro exemplo- bem menos extremo mas muito mais típico do que realmente ocorre todos os dias nos órgãos legislativos. Se as autoridades governamentais decidissem um dia que ninguém deveria trabalhar aos domingos, e mesmo presumindo que a comunidade em geral apoiasse essa decisão, de onde eles tirariam a autoridade para usar o poder de polícia do estado e impor um decreto como esse? Os cidadãos individuais não têm o direito de forçar seus vizinhos a não trabalhar, logo eles não podem delegar esse direito ao governo. De onde, então, o estado tiraria essa autoridade? A resposta é que ela viria de si mesma, seria auto-gerada. Seria como o direito divino das antigas monarquias, nas quais se presumia que os governos representavam o poder e o querer de Deus- conforme interpretação dos líderes terrenos, é claro. Nos tempos mais modernos, a maioria dos governos nem mesmo finge ter Deus como autoridade. Eles simplesmente confiam em seus grupos armados e exércitos, eliminando qualquer um que se oponha. Como aquele coletivista bem-conhecido, Mao Tsé-Tung, disse: “O poder político emana do cano de uma arma”.

Quando os governos afirmam que sua autoridade emana de qualquer fonte que não seja os governados, isso sempre conduz à destruição da liberdade. Proibir os homens de trabalhar aos domingos não pareceria ser uma grande ameaça à liberdade, mas, uma vez que o princípio se estabelece, ele abre a porta para outros decretos, e outros e mais outros até que a liberdade desapareça. Se aceitarmos que o estado ou qualquer grupo tem o direito de fazer as coisas que os indivíduos sozinhos não têm o direito de fazer, então nós teremos endossado inadvertidamente o conceito de que os direitos não são intrínsecos ao indivíduo e que eles realmente se originam do estado. Uma vez que aceitemos isso, estaremos na estrada que leva à tirania.

Os coletivistas não se preocupam com esses pormenores. Acreditam que os governos têm, de fato, poderes que são ainda maiores do que aqueles de seus cidadãos, e que a fonte desses poderes, assim o dizem, não são os indivíduos que compõem a sociedade, mas a própria sociedade, o grupo ao qual os indivíduos pertencem.

3. A SUPREMACIA DO GRUPO

Esse é o terceiro conceito que diferencia o coletivismo do individualismo. O coletivismo é baseado na crença de que o grupo é mais importante que o indivíduo. De acordo com essa perspectiva, o grupo é uma entidade que existe por si mesma e tem direitos que existem também por si mesmos. Além disso, esses direitos são mais importantes que os direitos dos indivíduos. Portanto, é aceitável sacrificar os indivíduos se necessário para “o bem maior do maior número”. Quantas vezes já não ouvimos isso? Quem pode se opor à perda da liberdade se ela é justificada como necessária para o bem maior da sociedade? O grupo principal, obviamente, é o estado. Portanto, o estado é mais importante que os cidadãos individuais, e é aceitável que se sacrifiquem os indivíduos se isso for necessário para beneficiar o estado. Esse conceito está no centro de todos os sistemas totalitários modernos baseados no modelo do coletivismo.

Por outro lado, os individualistas dizem: “Espere aí! Grupo? O que é um grupo?” Isso é só uma palavra. Não se pode tocar um grupo. Não se pode ver um grupo. O que se pode tocar e ver são os indivíduos. A palavra grupo é uma abstração e não existe como uma realidade tangível. É como a abstração chamada floresta. A floresta não existe. Somente as árvores existem. A floresta é um conceito [que se refere a um conjunto] de muitas árvores. Da mesma forma, a palavra grupo descreve somente o conceito abstrato de muitos indivíduos. Somente os indivíduos são reais e, portanto, não existe uma coisa chamada direito coletivo [group rights]. Somente os indivíduos têm direitos.

Só porque existem muitos indivíduos em um grupo e somente alguns poucos em outro não dá uma prioridade maior aos indivíduos do primeiro grupo- mesmo se ele for chamado de estado. Uma maioria de eleitores não tem mais direitos que uma minoria. Os direitos não derivam do poder do número. Eles não emanam do grupo. Eles são intrínsecos a cada ser humano.

Quando alguém afirma que os indivíduos devem ser sacrificados para o bem maior da sociedade, o que eles realmente estão dizendo é que alguns indivíduos devem ser sacrificados para o bem maior de outros indivíduos. A moral do coletivismo é baseada em números. Qualquer coisa pode ser feita desde que o número de pessoas beneficiadas seja supostamente maior que o número de pessoas sendo sacrificadas. Digo supostamente, por que, no mundo real, aqueles que decidem quem deverá ser sacrificado têm dificuldade em fazer contas. Os ditadores sempre afirmam representar o bem maior do maior número mas, na realidade, eles e as organizações que os apóiam compreendem menos que um porcento da população. A teoria é que alguém tem de falar para as massas e representar seus melhores interesses, já que eles são muito idiotas para percebê-los por si mesmos. Desta forma, os líderes coletivistas, sábios e virtuosos como são, tomam as decisões em seu lugar. É possível explicar qualquer atrocidade ou injustiça como uma medida necessária para o bem maior da sociedade. Os totalitários sempre desfilam como humanitários.

Como os individualistas não aceitam a supremacia do grupo, os coletivistas geralmente os representam como egoístas e insensíveis às necessidades alheias. Esse tema é comum nas escolas de hoje. Se uma criança se recusa a seguir o grupo, é criticada por ser socialmente desagregadora e não ser boa no “trabalho em equipe” ou um bom cidadão[...] Mas o individualismo não se baseia no ego. Baseia-se em princípios. Se você aceitar a premissa de que os indivíduos podem ser sacrificados em benefício do grupo, você cometeu um grande erro sob dois pontos de vista. Primeiro, os indivíduos são a essência do grupo, o que significa que o grupo está sendo sacrificado de qualquer forma, peça por peça. Segundo, o princípio subjacente é fatal: hoje, o indivíduo sendo sacrificado pode ser um desconhecido ou mesmo alguém de quem você não gosta. Amanhã, poderá ser você.

REPÚBLICAS VERSUS DEMOCRACIAS

Estamos lidando aqui com uma das razões pelas quais se faz uma distinção entre repúblicas e democracias. Nos anos recentes, foi-nos ensinado que acreditássemos que a democracia é a forma ideal de governo. Supostamente, foi isso que foi criado pela Constituição Americana. Porém, se você ler os documentos e as transcrições dos discursos dos homens que escreveram a Constituição, descobrirá que eles falam muito pouco de democracia. Eles disseram de forma muito clara que a democracia era uma das piores formas possíveis de governo. E então eles criaram o que chamaram de república. É por isso que a palavra democracia não aparece em lugar algum da Constituição e, quando os americanos fazem o “pledge of alliance” à bandeira, é à república que o fazem, e não à democracia. Quando o Cel. Davy Crockett aderiu à Revolução do Texas antes da famosa Batalha do Álamo, ele se recusou a assinar o juramento de fidelidade [oath of allegiance] ao futuro governo do Texas até que o texto fosse modificado para o futuro governo republicano do Texas (2). Isso é importante porque a diferença entre uma democracia e uma república é a diferença entre o coletivismo e o individualismo.

Em uma democracia pura, a maioria manda e fim de papo. Você poderia dizer, “O que há de errado nisso?”. Bem, poderia haver muita coisa errada nisso. Que tal uma turba de linchadores? Haveria somente uma pessoa com um voto de discórdia, e esse é o cara pendurado na corda. Isso é a democracia pura em ação.

Ah... espere um minuto”, você diria. “A maioria deve mandar, sim, mas não ao ponto de negar direitos à minoria”, e, é claro, você estaria correto. É exatamente isso o que uma república efetua. Uma república é uma forma de governo baseada no princípio do governo limitado da maioria de tal forma que se garanta que a minoria- mesmo que uma minoria composta de um único indivíduo- seja protegida dos caprichos e paixões da maioria. As repúblicas se caracterizam geralmente por constituições escritas que explicitam em detalhes as regras que tornam isso possível. Era essa a função da Carta de Direitos americana, que não é nada mais que uma lista das coisas que o governo não pode fazer. Ela diz que o Congresso, mesmo que represente a maioria, não poderá autorizar uma lei que negue às minorias o direito à liberdade de culto, de expressão, reunião pacífica, direito ao porte de armas e outros direitos “inalienáveis”.

Essas limitações ao poder da maioria são a essência de uma república, e são também o centro da ideologia chamada individualismo. É essa outra diferença principal entre esses dois conceitos: de um lado o coletivismo, apoiando qualquer ação governamental, desde que se possa dizer que é para o bem maior do maior número, e do outro o individualismo, defendendo os direitos da minoria contra as paixões e a cobiça da maioria.

4. COAÇÃO VERSUS LIBERDADE

O quarto conceito que diferencia o coletivismo do individualismo tem a ver com a responsabilidade e a liberdade de escolha. Falamos sobre a origem dos direitos, mas há uma questão semelhante envolvendo a origem da responsabilidade. Os direitos e as responsabilidades andam juntos. Se você valoriza o direito de viver sua própria vida sem que os outros lhe digam o que fazer, então você tem de assumir a responsabilidade de ser independente, de prover sua própria subsistência sem esperar que os outros tomem conta de você. Direitos e responsabilidades são somente lados diferentes da mesma moeda.

Se somente os indivíduos têm direitos, segue-se então que somente os indivíduos têm responsabilidades. Se grupos têm direitos, então grupos também têm responsabilidades e é aí que reside um dos grandes desafios ideológicos da era moderna.

Os individualistas são os campeões dos direitos individuais. Portanto, aceitam o princípio da responsabilidade individual e não o da responsabilidade grupal. Acreditam que todos têm a obrigação pessoal e direta de sustentar primeiramente a si mesmos e sua família, e só então aqueles que podem estar necessitados. Isso não significa que eles não acreditem em ajuda mútua. Não é só porque eu sou um individualista que eu tenho de mover o meu piano sozinho. Só significa que eu acredito que movê-lo é uma responsabilidade minha, não de alguma outra pessoa, e que cabe a mim organizar a assistência voluntária aos outros.

O coletivista, por outro lado, declara que os indivíduos não são pessoalmente responsáveis por fazer caridade, por criar seus próprios filhos, sustentar seus pais idosos ou a si mesmos. Que essas são obrigações grupais do estado. O individualista espera fazê-lo por si mesmo; o coletivista quer que o governo faça isso para ele: forneça emprego e saúde, renda mínima, alimentação, educação e um lugar decente para viver. Os coletivistas são apaixonados pelo governo. Eles o cultuam. Têm uma fixação pelo governo como o principal mecanismo grupal para a resolução de todos os problemas.

Os individualistas não compartilham dessa fé. Vêem o governo como criador de mais problemas do que os que consegue resolver. Acreditam que a liberdade de escolha levará à melhor solução dos problemas sociais e econômicos. Milhões de idéias e esforços, cada um deles sujeito a tentativa, erro e competição- entre os quais a melhor solução se torna óbvia pela comparação de seus resultados com o de todas as outras: esse processo produzirá resultados bem superiores àqueles que podem se atingidos por um grupo de políticos ou um comitê dos assim chamados homens sábios.

Contrastando com isso, os coletivistas não confiam na liberdade. Temem-na. Estão convencidos de que a liberdade pode funcionar quanto a questões menores, como a cor das meias que você quer usar, mas quando se trata das questões importantes, como a disponibilidade monetária, práticas bancárias, investimentos, planos de seguro, saúde, educação, etc., a liberdade não funcionará. Essas coisas, dizem eles, devem simplesmente ser controladas pelo governo, senão o caos reinará.

Há duas razões para a popularidade desse conceito. Uma é que a maioria de nós foi educado em escolas públicas e foi isso que nos ensinaram. A outra razão é que o governo é exatamente o grupo que pode legalmente forçar todos a participar. Tem o poder de tributar, respaldado pelas prisões e a força das armas para obrigar todos a se alinhar, e esse é um conceito muito atraente para o intelectual que se vê como um engenheiro social.

Os coletivistas dizem: “Devemos forçar as pessoas a fazer o que acreditamos que elas deveriam fazer porque elas são muito idiotas para fazê-lo por si mesmas. Já nós fomos à escola e lemos livros. Somos bem-informados. Somos mais inteligentes do que as pessoas comuns. Se deixarmos que elas tomem conta, cometerão erros terríveis. Logo, quem deve tomar conta somos nós, os iluminados. Devemos decidir pela sociedade e impor nossas decisões através da lei de forma que todos obedeçam. É nossa obrigação para com a humanidade comandar dessa forma”.

Os individualistas, por seu lado, dizem: “Nós também acreditamos estar corretos e que as massas raramente fazem o que pensamos que deveriam fazer, mas não acreditamos em impor a ninguém o cumprimento do que desejamos porque, se aplicássemos esse princípio, então outros, representando grupos maiores que os nossos, poderiam nos compelir a agir como eles determinassem, e isso seria o fim da nossa liberdade.

A afinidade entre o egoísmo intelectual e a coação foi demonstrada de forma dramática pelo professor de Direito, Alan Young, canadense, que escreveu um editorial na edição de 28 de março de 2004 do Toronto Star. O tema era “crimes de ódio”, e a solução que ele apresentou foi um clássico exemplo da mentalidade coletivista. Escreveu:

“O traço característico desse tipo de criminoso é a idiotia. É um crime que nasce da deficiência intelectual... A justiça penal pode fazer muito pouco para combater a idiotia... É provável que esse tipo de criminoso precise de uma rigorosa desprogramação...”

“Assim como alguns tipos de câncer exigem cirurgia invasiva, os crimes de ódio precisam de medidas intrusivas... O estilo “perdeu-a-cabeça, estava alcoolizado” de punição moderna simplesmente não funciona nesses casos. Para crimes de idiotia extrema, precisamos da justiça estilo “Laranja Mecânica”- atar esse tipo de criminoso a uma cadeira por um período interminável, mantendo seus olhos bem abertos com grampos metálicos para que não possa se desviar de uma avalanche de imagens cinematográficas cuidadosamente concebidas para romper seu apego neurótico à deficiência intelectual auto-induzida”.

“No contexto do crime de ódio, lamento que tenhamos uma proibição constitucional a uma punição cruel e atípica”. (3)

Uma das formas mais rápidas de se identificar um coletivista é ver como ele reage aos problemas da vida em sociedade. Não importa o que o incomode em sua rotina diária- se é o lixo na rua, fumar em público, roupas indecentes, intolerância, envio de mala direta [junk mail]- qualquer coisa, sua resposta imediata será: “Deveria ter uma lei contra isso!”. E, é claro, os profissionais do governo que sobrevivem da coação ficam mais do que felizes em cooperar. A conseqüência é que o governo só faz crescer e crescer. É uma rua de mão única. Todo ano há cada vez mais leis e cada vez menos liberdade. Cada lei parece relativamente benéfica em si mesma, justificada por alguma conveniência ou pelo bem maior do maior número, mas o processo continua sem parar até que o governo seja total e a liberdade seja extinta. Pouco a pouco, as pessoas, elas mesmas, tornam-se as defensoras de sua própria escravização.

A SÍNDROME DE ROBIN HOOD

Um bom exemplo dessa mentalidade coletivista é o uso do governo para praticar a caridade. A maioria das pessoas acredita que todos temos a responsabilidade de ajudar os necessitados dentro de nossas possibilidades, mas e aqueles que discordam, aqueles que pouco se importam com as necessidades alheias? Deveria ser-lhes permitido o egoismo enquanto nós somos tão generosos? O coletivista vê esse tipo de pessoa como justificativa para o uso da coação, já que é por uma causa tão nobre! Ele vê a si mesmo como um Robin Hood moderno, roubando dos ricos para dar aos pobres. Obviamente, nem tudo chega aos pobres. Afinal, Robin e seus homens precisam comer, beber e ser felizes, e isso não sai barato. É necessária uma burocracia gigantesca para administrar a caridade pública, e os Robin Hoods no governo se acostumaram a uma grande parte do saque, enquanto o povo- bem, ele agradece qualquer coisa que receber, sem se importar com o que for desviado no meio do caminho. Foi tudo roubado de outra pessoa mesmo!

A assim chamada caridade do coletivismo é uma perversão da história bíblica do bom samaritano que pára na estrada para ajudar um estranho que foi roubado e espancado. Ele até leva a vítima para uma estalagem e lhe paga a estadia até que se recupere. Todos aprovam esses atos de compaixão e caridade, mas o que pensaríamos se o samaritano tivesse apontado a espada para o viajante seguinte e o ameaçasse de morte se não se prontificasse a ajudar também? Se isso tivesse acontecido, duvido que a história teria entrado na Bíblia, pois, a partir desse momento, o samaritano não seria nada diferente do ladrão original- que também poderia ter tido um motivo virtuoso. De acordo com o que sabemos, ele poderia ter alegado estar simplesmente garantindo o sustento de sua família e alimentando seus filhos. A maioria dos crimes são racionalizados dessa maneira, mas são crimes mesmo assim. Quando a coação entra em campo, a caridade vai embora.(4)

Os individualistas se recusam a jogar esse jogo. Esperamos que todos sejam caridosos, mas também acreditamos que uma pessoa deveria ser livre para não ser caridosa se assim preferisse. Se preferisse fazer uma doação diferente da que lhe sugerimos, se preferisse doar uma quantidade menor do que a que consideramos que deveria, ou se preferisse não fazer nenhuma doação, acreditamos que não possuímos nenhum direito de forçá-lo a agir de acordo com nossa vontade. Podemos tentar persuadí-lo a fazê-lo, podemos apelar para sua consciência e, especialmente, podemos dar-lhe o nosso próprio bom exemplo, mas rejeitamos qualquer tentativa do grupo forçá-lo a isso, seja dominando-o fisicamente enquanto arrancamos o dinheiro do seu bolso ou usando uma urna para aprovar leis que tirarão seu dinheiro através de tributos. Em ambos os casos, o princípio é o mesmo: é conhecido como roubo.

Os coletivistas o levariam a acreditar que individualismo é somente uma outra palavra para egoísmo, já que os individualistas se opõem aos “programas sociais” e outras formas de redistribuição coercitiva da riqueza, mas a verdade é exatamente o contrário. Os individualistas advogam a verdadeira caridade, que é a doação voluntária de seu próprio dinheiro, enquanto os coletivistas advogam a doação coercitiva do dinheiro que, evidentemente, por ser alheio, consegue fazer com que essa visão seja tão popular.

Um outro exemplo: o coletivista dirá: “Eu acho que todos deveriam usar cinto de segurança. Isso é evidente. As pessoas podem se machucar se não usarem cinto de segurança. Portanto, devemos aprovar uma lei que exija que todos o utilizem. Senão, colocaremos esses imbecis na cadeia.” O individualista diz: “Acho que todo mundo deveria usar cinto de segurança. As pessoas podem se machucar em acidentes se não o fizerem, mas não acredito em forçar ninguém a fazer isso. Acredito em convencê-los com lógica, persuasão e bom exemplo, se isso for possível, mas também acredito em liberdade de escolha.

Um dos slogans mais populares do marxismo é: “de cada um de acordo com sua capacidade, para cada um de acordo com sua necessidade”. Esse é o fundamento do socialismo teórico, e é um conceito muito sedutor. Uma pessoa que ouve esse slogan pela primeira vez pode dizer: “O que tem de errado nisso? Não é a essência da caridade e da compaixão para com os necessitados? O que poderia haver de errado em doar aos outros de acordo com a nossa capacidade e suas necessidades?” E a resposta é: não há nada de errado nisso, da forma como está dito, mas é um conceito incompleto. A pergunta não respondida é como isso será conseguido? Deveria ser livremente ou através da coação? Mencionei anteriormente que os coletivistas e os individualistas geralmente concordam com os objetivos, mas discordam quanto aos meios, e esse é um exemplo clássico. O coletivista diz: arranque-o pela força da lei. O individualista diz: doe de acordo com o livre-arbítrio. O coletivista diz: um número insuficiente de pessoas irá responder ao apelo a não ser que sejam forçadas. O individualista diz que um número suficiente de pessoas irá responder e realizará a tarefa. Além disso, a preservação da liberdade também é importante. O coletivista defende a pilhagem legalizada em nome de uma causa nobre, acreditando que os fins justificam os meios. O individualista advoga o livre-arbítrio e a verdadeira caridade, acreditando que um objetivo nobre não justifica que se cometa roubo ou se renuncie à liberdade.

Há uma história de um revolucionário bolchevique que, de cima de uma caixa de sabão, falava a uma pequena multidão em Times Square. Depois de descrever as glórias do socialismo e do comunismo, disse: “Que venha a revolução, quando todos comerão pêssegos com leite condensado”. Um velhinho lá no fundo gritou: “Eu não gosto de pêssegos com leite condensado”. O bolchevique pensou por um momento e então respondeu: “Que venha a revolução, camarada, e você vai gostar de pêssegos com leite condensado”.

Essa, então, é a quarta diferença entre o coletivismo e o individualismo, e talvez a mais fundamental de todas: os coletivistas acreditam na coação. Os individualistas acreditam na liberdade.

5. IGUALDADE VERSUS DESIGUALDADE PERANTE A LEI

O quinto conceito que diferencia o coletivismo do individualismo tem a ver com a forma com que as pessoas são tratadas perante a lei. Os individualistas acreditam que não há duas pessoas exatamente iguais, e que cada um é superior ou inferior aos outros de diversas formas mas que, perante a lei, as pessoas devem ser todas tratadas igualmente. Os coletivistas acreditam que a lei deveria tratar as pessoas de forma desigual para se alcançar transformações consideradas desejáveis na sociedade. Eles enxergam o mundo como tragicamente imperfeito. Eles vêem pobreza, sofrimento e injustiça e concluem que algo deve ser feito para alterar as forças que produziram esses efeitos. Acreditam-se engenheiros sociais de posse da sabedoria necessária para re-estruturar a sociedade com a finalidade de atingir uma ordem mais humana e lógica. Para tanto, eles devem intervir nos assuntos dos homens em todos os níveis e redirecionar suas atividades de acordo com um plano-mestre. Isso significa que eles devem redistribuir a riqueza e usar o poder de polícia do estado para impor o comportamento prescrito.

A conseqüência dessa mentalidade pode ser vista por toda a sociedade hoje. Quase todos os países do mundo têm um sistema fiscal concebido para tratar as pessoas desigualmente conforme a renda, estado civil, número de filhos que têm, a idade e o tipo de investimento que elas possam ter. A finalidade desse sistema é redistribuir a riqueza, o que significa favorecer algumas classes em detrimento de outras. Em alguns casos, há estranhos meios de evasão inscritos nas leis fiscais somente para favorecer uma corporação ou um grupo politicamente influente. Outras leis oferecem isenção fiscal e subsídios a grupos ou corporações favorecidos. Essas leis têm como única finalidade a desigualdade.

No domínio das relações sociais, há leis que estabelecem quotas raciais e de gênero, iniciativas de ação afirmativa e a proibição da expressão de opiniões que possam ser consideradas inaceitáveis por algum grupo ou pelos planejadores-mestres. Em todas essas medidas, a lei é aplicada desigualmente, de acordo com o grupo ou classe aos quais você pertença ou que opinião você defenda. Dizem-nos que isso tudo é necessário para se alcançar uma transformação desejável na sociedade. Mesmo assim, depois de mais de um centena de anos de engenharia social, não há sequer um lugar no globo onde os coletivistas possam apontar com orgulho e mostrar onde o seu plano-mestre realmente funcionou como previram. Há vários livros escritos sobre a utopia coletivista, mas elas nunca se materializaram no mundo real. Em todo lugar onde o coletivismo foi aplicado, os resultados foram mais pobreza do que antes, mais sofrimento do que antes, e certamente mais injustiça do que antes.

Há uma forma melhor: o individualismo é baseado na premissa de que todos os cidadãos devem ser iguais perante a lei, não importando sua origem nacional, raça, religião, gênero, educação, situação econômica, estilo de vida ou opinião política. Nenhuma classe deveria receber tratamento preferencial, não importa o mérito ou popularidade da causa que defende. Favorecer uma classe em detrimento de outra não é igualdade perante a lei.

6. O DEVIDO PAPEL DO GOVERNO

Quando todos esses fatores são considerados em conjunto, chegamos à sexta diferenciação ideológica entre o coletivismo e o individualismo: os coletivistas acreditam que o devido papel do governo deveria ser positivo, que o estado deveria tomar a iniciativa em todos os aspectos que envolvem os assuntos dos homens, que deveria ser agressivo, liderar e prover. Deveria ser o grande organizador da sociedade.

Os individualistas acreditam que o devido papel do governo é negativo e defensivo. É proteger, não prover, pois se for concedido ao estado o poder de ser o provedor de alguns, deve também ter o poder de tirar de outros, e uma vez que o poder é concedido, há aqueles que tentarão obtê-lo para conseguir vantagens pessoais. Isso acaba sempre em pilhagem legalizada e perda de liberdade. Se o governo for poderoso o suficiente para nos dar tudo o que queremos, será poderoso o suficiente também para tirar tudo o que temos. Portanto, o devido papel do governo é proteger as vidas, a liberdade e a propriedade dos seus cidadãos e nada mais (5).

O ESPECTRO POLÍTICO

Ouve-se falar muito hoje em dia de direita versus esquerda, mas o que significam esses termos? Por exemplo, diz-se que os comunistas e socialistas estão na extrema esquerda, e que os nazistas e fascistas estão na extrema direita. Aqui temos a imagem de dois poderosos adversários ideológicos colocados um contra o outro, e a impressão é de que, de alguma forma, eles se opõem. Mas qual a diferença? Eles não são oposição de forma alguma. Eles são a mesma coisa. As insígnias podem ser diferentes, mas quando se analisa o comunismo e o nazismo vê-se que ambos incorporam os princípios do socialismo. Os comunistas não têm dúvidas quanto ao socialismo ser seu ideal, e o movimento nazista na Alemanha se chamava, na realidade, Partido Nacional-Socialista. Os comunistas acreditam no internacional-socialismo, enquanto os nazistas advogam o nacional-socialismo. Os comunistas promovem o ódio de classe e o conflito entre classes para motivar a lealdade e a obediência cega a seus seguidores, enquanto os nazistas usam os conflitos de raça para atingir o mesmo objetivo. Além disso, não há nenhuma diferença entre comunismo e nazismo. São ambos a epítome do coletivismo.

E ainda nos dizem que eles são, supostamente, as extremidades opostas do espectro!

Só uma coisa faz sentido na construção de um espectro político, e é colocar um governo inexistente em uma extremidade da linha e 100% de governo na outra. Assim teremos algo que faz sentido: aqueles que defendem um governo inexistente são os anarquistas, e aqueles que defendem um governo total são os totalitaristas. Com essa definição, descobrimos que o comunismo e o nazismo estão, juntos, no mesmo extremo. São ambos totalitários. Por que? Porque são ambos baseados no modelo do coletivismo. Comunismo, nazismo, fascismo e socialismo: todos gravitam em direção a um governo sempre maior, já que essa é a extensão lógica da sua ideologia em comum. No coletivismo, todos os problemas são de responsabilidade do estado e devem ser resolvidos pelo estado. Quanto mais problemas existirem, mais poderoso o estado deve se tornar. Uma vez nessa ladeira escorregadia, não há como parar até que você atinja o fim da escala, que é o governo total. Não importa o nome que lhe seja dado, não importa como se mude o rótulo e se faça com que ele pareça novo ou diferente: coletivismo é totalitarismo.

Na realidade, o conceito de uma linha reta para o espectro político é, de uma certa forma, enganador. É um círculo, na realidade. Você pode pegar essa linha reta com 100% de governo em uma extremidade e zero na outra e arqueá-la até fazer com que as extremidades se toquem em cima. Agora você tem um círculo já que, sob a anarquia, onde não há governo algum, você tem o governo absoluto daqueles com o maior pulso e as armas mais poderosas. Então, você pula do governo inexistente para o totalitarismo em um piscar de olhos. Eles se encontram no topo. Estamos, na realidade, lidando com um círculo, e o único lugar lógico para ficarmos é em algum lugar entre os extremos. Nós precisamos de governo, é claro, mas ele deve ser construído com base no individualismo, uma ideologia que sempre leva àquela parte do espectro que envolve o menor governo possível mas suficiente para fazer as coisas funcionarem, ao invés do coletivismo, que sempre leva em direção àquela extremidade do espectro da maior quantidade possível de governo para que as coisas aconteçam. O melhor governo é aquele que menos governa.


(1) No Oriente Médio e partes da África e da Ásia, há uma terceira ética denominada teocracia, uma forma de governo que combina igreja e estado e obriga os cidadãos a aceitarem uma doutrina religiosa em particular. Isso foi comum no início da Cristandade européia e surgiu até mesmo em algumas colônias dos Estados Unidos. Sobrevive no mundo de hoje na forma do Islã, e tem milhões de defensores. Qualquer visão abrangente das ideologias políticas tem de incluir a teocracia, mas o tempo não permite tal escopo nessa apresentação[...]

(2) “David Crockett: Parliamentarian,” de William Reed, National Parliamentarian, Vol. 64, Third Quarter, 2003, p. 30.

(3) “Hate Criminal Needs Deprogramming [Crimes de ódio exigem desprogramação],” de Alan Young, Toronto Star, 28 de março de 2004, p. F7.

(4) Sejamos claros quanto a isso. Se nós ou nossas famílias estivéssemos realmente morrendo de fome, a maioria de nós roubaria se essa fosse a única maneira de obtermos comida. Seriamos motivados pelo nosso intrínseco direito à vida, mas não chamemos isso de caridade virtuosa. Seria sobrevivência pura e simples.

(5) Há muito mais a ser dito do que é permitido pelas limitações de tempo dessa apresentação. Uma questão importante é o fato de que há uma terceira categoria de ação humana que não é nem própria e nem imprópria, nem defensiva e nem agressiva; que há áreas de atividade que podem ser assumidas pelo estado por conveniência- como a construção de estradas e a manutenção de parques de recreação- desde que sejam financiadas não pelos impostos gerais, mas inteiramente por aqueles que as utilizem. De outra forma, alguns se beneficiariam às expensas de outros, e isso seria redistribuição coercitiva da riqueza, um poder que deve ser negado ao estado. Essas atividades seriam permissíveis porque têm um impacto insignificante sobre a liberdade. Estou convencido de que seriam administradas mais eficientemente e ofereceriam um serviço público melhor se pertencessem e fossem operadas pela iniciativa privada, mas não há razão para se debater isso quando questões muito mais importantes estão em jogo. Depois que a liberdade for garantida, teremos o luxo de debater esses detalhes. Um outro exemplo de uma atividade opcional é a alocação de freqüências de transmissão de estações de rádio e TV. Embora isso não proteja vidas, a liberdade ou a propriedade, é uma questão de conveniência para uma comunicação organizada. Não há nenhuma ameaça à liberdade pessoal desde que a autoridade que conceder as licenças seja administrada imparcialmente e não favoreça uma classe de cidadãos ou um ponto de vista em detrimento de outro. Um outro exemplo de um atividade governamental opcional seria uma lei no Havaí que proíbe a importação de cobras. A maioria dos havaianos quer essa lei por a considerarem conveniente. Rigorosamente, não envolve uma função própria do governo já que não protege a vida, a liberdade ou a propriedade dos cidadãos, mas tampouco é imprópria, desde que seja administrada de tal forma que o custo seja assumido igualmente por todos, não só por alguns em benefício de outros. Seria possível argumentar que essa é uma função própria do governo, já que as cobras poderiam ameaçar os animais domésticos que são de propriedade dos cidadãos, mas isso seria um exagero. É exatamente esse tipo de exagero [stretching of reason] que os demagogos usam quando querem consolidar seu poder. Quase toda a ação governamental poderia ser racionalizada como um proteção indireta da vida, da liberdade ou da propriedade. A principal defesa contra jogos de palavras desse tipo é colocar-se firmemente contra qualquer tipo de financiamento que leve à transferência de riqueza de um grupo a outro. Isso já retira de vez a vantagem política que motiva a maioria dos esquemas coletivistas. Sem a possibilidade da pilhagem legalizada, a maioria das manipulações se acabam. Finalmente, quando as questões se tornam sombrias, e é realmente impossível ver claramente se uma ação do governo é aceitável, há sempre uma regra prática em que se pode confiar para saber o que deve ser feito: a de que o melhor governo é aquele que menos governa.


*http://www.freedomforceinternational.org/pdf/Chasm.pdf
[tradução parcial baseada na versão revista em 22 de junho de 2003]

Tradução: Caio Rossi