sábado, 26 de abril de 2008

Memórias do Subterrâneo

por Antonio Fernando Borges

Nos anos de juventude, comendo o pão amargo amassado por uma dupla de autores alemães ressentidos e mal-intencionados, nós - os valentes Camaradas - queríamos transformar o mundo à nossa imagem e semelhança. Tudo, sempre, em nome de um suposto... "amor à Humanidade".

Mas éramos (sem saber) incapazes de amar o próximo, no sentido mais simples e verdadeiro da palavra. Entre as proverbiais boas intenções e nossos gestos mesquinhos, espraiava-se o infinito.

Uma cena típica bastaria para ilustrar tamanho descompasso.

Era verão, era a tarde de um sábado ensolarado. Eram os intragáveis anos '70.

Saíamos em grupo da Faculdade, depois de duas horas extracurriculares de leituras marxistas - daquelas que acirram os ânimos dos jovens contra a sociedade em geral e contra a própria família (burguesa!) em particular. No caminho até o ponto de ônibus, cruzamos com dois pedintes, com as mãos estendidas e a cara de fome.

Todos nós passamos por eles de cabeça erguida, com a empáfia de quem conhecia a solução para aquelas "injustiças do capitalismo".

Todos, menos eu. Com o que ainda me restava do sentimento cristão, aprendido na infância, comovi-me subitamente com a cena: pus a mão no bolso e "sacrifiquei" parte do dinheiro reservado para os próximos lanches na cantina do Instituto de Comunicação - e estendi as poucas notas aos mendigos.

Parados alguns passos mais adiante, meus Companheiros me observavam com severidade. E aquele que se fazia de (e até se sentia) nosso Líder, adiantou-se em condenar meu "desvio burguês":

"É assim que você quer ajudar a transformar o mundo, companheiro? Retardando o conflito de classes através dessas atenuantes pequeno-burguesas".

Como um criminoso apanhado em flagrante, ainda esbocei uma reação honesta:

"Eles estavam com fome."

Mas o outro, implacável:

"Como se isso fosse uma justificativa! Será que você ainda não aprendeu que não se trata de casos individuais? Pessoas não contam; pessoas não existem, meu caro. O que existem são as classes sociais!"

Acompanhei o grupo em silêncio, até nosso destino imediato: o ponto de ônibus. Mas todos tinham os olhos sonhadores para o futuro distante: o "paraíso socialista".

(Durante alguns dias, meus companheiros continuaram me olhando desconfiados, sendo que nosso Líder ainda me recomendou algumas "leituras extras", para ajudar a curar meus "desvios de classe".)

A passagem dos anos me afastou desse Reino de Trevas - embora o pesadelo do "outro mundo possível" se encontre parcialmente instalado entre nós.

Dias atrás, no entanto, cruzei com meu ex-Líder, numa rua do Centro. Protegido por uma pilastra (ele não me viu), flagrei-o no instante exato em que negava esmola, atenção e piedade a um morador-de-rua. Espantou-o com um gesto de desdém - e seguiu em frente.

Amar a Humanidade é fácil, dizia Graham Greene, difícil é amar o próximo.

Pelo visto, meu ex-Líder continua acreditando que os homens de carne-e-osso são apenas uma abstração inoperante, ao passo que abstrações aberrantes como "excluídos" e "classes sociais" constituem a única realidade possível.

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