quarta-feira, 23 de julho de 2008

Como a esquerda ficou oca

por Alexandre Barros, no Ordem Livre

Imaginem como a esquerda vai viver agoniada com uma China capitalista na qual Mao Tsé-tung se limita a enfeitar as notas de 20 yuans. A China tem mais milionários e mais bilionários que o Brasil.

Adeus às longas reuniões para discutir qual das linhas é mais válida: a chinesa, mais radical, ou a russa, que queria tomar o poder pela burguesia nacional. Os comunistas da linha chinesa e da linha russa viviam às turras para ver quem mais legitimamente representava o interesse dos oprimidos. Quem saiu do socialismo quer mesmo é melhorar de vida e consumir, tanto na Rússia, e em seus antigos satélites, quanto na China.

A China gera lucros, prazeres e empregos no Brasil, importando e exportando todo o tipo de coisas. Tem US$ 1 trilhão em reservas internacionais, obtido por meio de vendas capitalistas para países capitalistas. A cada ano alguns milhões de chineses entram no mercado consumidor.

Fidel é carta fora do baralho. Ainda vivo, mas fora do poder, não tem mais saúde para viajar e não despertará o fascínio que, confesso, nunca entendi, em suas visitas internacionais e em sua arenga.

A esquerda adorava a capacidade que Fidel tinha de entreter as massas com discursos de cinco horas. Achava isso fascinante. Passou despercebido um livro de um economista sueco sobre a economia do uso do tempo (Staffan Burenstam Linder, The Harried Leisure Class, NY: Columbia University Press: NY, 1970), no qual ele dá a resposta com muita simplicidade: isso só era possível porque não havia nenhuma alternativa em Cuba. Ninguém tinha mais nada para fazer em Cuba. Entre não fazer nada e ouvir Fidel, ouviam Fidel. Tenho dúvida se, de barriga vazia, gostavam do que ouviam.

Já pensaram: um presidente do Brasil falando por cinco horas na televisão? Ninguém iria assistir, porque o povo tem mais o que fazer.

O sistema de saúde era fantástico, até que alguém perguntou: como a saúde pode ser excelente num lugar em que as pessoas não têm o que comer? A esquerda perdeu a chance de ser politicamente correta dizendo que, em Cuba, não havia obesos...

Li, em algum jornal, que a última vitória de Fidel foi ter colocado o embargo cubano como tema central na eleição americana. Ora, esse argumento só se sustenta quando as pessoas ignoram que o dinamismo do capitalismo o leva rapidamente para onde está o lucro. Com Fidel fora, Cuba será um paraíso de lucros. Os capitalistas já estão cuidando disso. E os cubanos, certamente, viverão muito melhor.

Revolucionários voltavam de Cuba dizendo que o país era maravilhoso. Deliravam com a pobreza, a miséria, as casas e os carros caindo aos pedaços. Chamavam de beleza do socialismo. Quando questionados sobre os problemas, admitiam que, realmente, la revolución tinha uns probleminhas.

Poucos direitistas iam a Cuba, mas, mesmo os esquerdistas, depois de meia hora de elogios, se diziam chocados com um probleminha: a extensão da prostituição. Alguém inventou a anedota sobre a suposta genialidade retórica de Fidel. Quando confrontado com alguém que lhe disse: 'Mas, comandante, em Cuba as universitárias são obrigadas a prostituir-se.' Fidel teria respondido: 'Mentira capitalista! No és que las universitarias tienem que ser prostitutas. La verdad és que en Cuba las prostitutas van a la Universidad.'

Felizmente não teremos de conviver mais com agentes do Dops convocando na época um jovem professor da Universidade de Brasília (UnB) de quem haviam apreendido um livro que ele recebera pelo correio chamado Cuba: est il socialiste? Comparecendo ao Dops expliquei que o livro criticava o regime cubano e dizia que ele não passava de um autoritarismo barato. Cuba de socialista não tinha nada. O policial fez-me uma concessão. Disse que, como eu era professor da Universidade de Brasília, eu precisava saber das coisas. Ele ia liberar os livros. Ao outro livro nem prestou atenção, sorte minha. Chamava-se Manuel de Cryptographie.

Mudaram o Brasil e Cuba. Ainda bem.

Duros tempos em que Cuba chamava mais atenção da polícia do que a ciência de escrever em códigos. Mas também, naquele tempo, sem cartões corporativos, o açúcar da UnB era menos doce e o lixo era menos sujo.

E agora que não poderão mais pichar muros com as sete letras fatídicas: 'Fora FMI!' O FMI hoje é um ator em busca de um papel. Aposentam-se os funcionários que têm tempo suficiente e enxugam os quadros porque o FMI não tem mais clientes. Os países que mais tomavam emprestado do FMI aprenderam as lições do próprio Fundo. Não gastar mais do que ganham, realisticamente.

Acho que o FMI é um caso único de burocracia autodestrutiva: acabou com os problemas que o mantinham vivo e hoje batalha para encontrar um novo papel.

O prato final da esquerda também se esvaziou. Acabou a dívida externa, temperada com as perdas internacionais.

Que horror vai ser a vida daqui para adiante.

Nixon estava certo quando disse que o caso Watergate consumiu muitas toneladas de papel na década de 1970, nos anos 80 talvez rendesse uns livros, nos 90, alguns artigos e nos anos 2000 seria apenas algumas notas de rodapé.

Destino parecido terão os quatro temas prediletos da esquerda: o comunismo virou o capitalismo mais dinâmico do mundo nos anos 2000.

Fidel não é mito. Caminha para virar nota de rodapé.

O FMI batalha para sobreviver. Os países sensatamente, seguiram a receita, pararam de dar lucros ao Fundo e, controlando a inflação, melhoraram a vida de seu pobres.

Para a esquerda, 1968 foi o ano do protesto. 2008 é o do desalento. Pela primeira vez a esquerda não tem mais nada para celebrar com sua crítica.

Em tempo: nunca fui a Cuba, achava perda de tempo. Daqui a algum tempo, talvez vá.

Originalmente publicado em O Estado de S. Paulo.

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