terça-feira, 29 de julho de 2008

Filmes e séries “de direita”

por Pedro Sette Câmara

Aparentemente é impossível discutir O cavaleiro das trevas sem falar de seu subtexto político. Confesso que não consigo captar referências a McCain ou Obama, mas consigo entender de onde saem certas interpretações – as quais me parecem erradas. Por exemplo, Andrew Klavan, no Wall Street Journal, diz que o símbolo do morcego projetado no céu é na verdade um W, o mesmo que W que está no meio do nome do presidente George W. Bush. É difícil imaginar que essa referência fizesse parte das intenções da DC Comics algumas décadas atrás, mas enfim.

Batman também é comparado a Bush por combater o crime – o mal – usando seus próprios meios. Mas, ao menos no que diz respeito a O cavaleiro das trevas, a comparação continua falha, já que o Batman do filme faz tudo a contragosto e gostaria que o sistema funcionasse.

Mas há algo que une Batman e outros heróis dramáticos, como o Dr. House da série homônima, e talvez até Antígona – sim, a filha de Édipo – e que, em vez de ser uma conseqüência ou uma legitimação a posteriori de uma política já existente, pode ser um sinal de que o público americano está disposto a aceitar certos tipos de condutas.

O Dr. House não trabalha com o sistema. Ele quebra todos os protocolos e necessita de uma interface para manter sua posição – exatamente como o Batman depende um pouco do Comissário Gordon. O Dr. House faz o que lhe dá na telha, não presta satisfações, não obedece a hierarquia, e despreza todo mundo. Será Dr. House um direitista? O curioso é que até pouco tempo atrás qualquer coisa que representasse “o sistema” seria identificado com “estruturas burguesas” e o “transgressor” seria investido com o manto da virtude. A diferença de O cavaleiro das trevas para histórias antigas de transgressão é que o Batman gostaria que o sistema funcionasse. Ele não veio para denunciar o sistema, mas para tentar fortalecê-lo e enfrentar alguns fatos desagradáveis, como o de que a violência só pode ser administrada, mas não efetivamente erradicada.

Seria então o personagem que transgride para reforçar um apologista da direita? Seria o Dr. House, que afinal de contas salva vidas (não é esse o propósito da medicina?), um apologista da direita? E por que não colocar nessa galeria Antígona, que habitualmente (e erradamente) é lida como aquela que quis opor a religião à política?

Encarar o problema dessa maneira é, como já sugeri, perder de vista o principal. Essa leitura de Antígona e a existência de outros personagens são muito anteriores ao governo de George W. Bush. O que está em questão, aparentemente, é que, para o público americano, o herói é aquele que faz o que é certo sem considerar os custos – custos que, na maioria das vezes, não são pagos por ele. O herói está legitimado para fazer o que quer porque sabe mais ou é mais em algum sentido – o Dr. House, por exemplo, sempre diz que os pacientes são idiotas e decide em seu lugar. Mesmo que os americanos sejam bons de escrever dramas do tipo “os dois lados da questão”, ninguém nunca diz que talvez valha mais a pena morrer livre e responsável do que viver como um idiota.

Isso é o que nos traz ao ponto central. O “sistema” não deve existir em torno de conveniências, embora não possa se manter sem a idéia de conveniência (por exemplo, é melhor aceitar que a violência só pode ser administrada a rebaixar a condição humana tentando aboli-la). O sistema não pode prescindir das regras que lhe dão identidade, e que dão identidade até a uma sociedade, como a presunção de inocência, o direito de habeas corpus, o estado de direito e o livre mercado. Até agora não me parece que a esquerda tenha primado pela defesa intransigente, capaz de escandalizar-se com simples filmes, desse “sistema”. Parece-me que, se a direita está associada ao status quo, os transgressores continuarão na esquerda. Aqueles mesmos que vêm dizendo que não é possível fazer uma omelete sem quebrar os ovos. A única diferença é que os novos filmes e séries vêm colocando essa questão sem fazer a proposta de um novo sistema, de uma nova regra que substitua a regra velha e falida, mas admitindo que, para parafrasear T.S. Eliot, não é possível criar um sistema tão bom que dispense as pessoas de ser boas.

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