sexta-feira, 4 de julho de 2008

Era uma vez uma verdade

Ram Rajagopal, no Digestivo Cultural

Às vezes é frustrante ser brasileiro. Parece que saímos sem dúvida alguma de um Processo de Kafka, ou das páginas mal intencionadas de um Deleuze, com sua Teoria Molecular. Ontem parei para pensar – aquele ato impossível de ser executado por muitos conterrâneos por motivos variados como fome ou, mais comumente, preguiça – e me dei conta de que é impossível a sociedade brasileira funcionar. Parece uma sociedade saída da cabeça de um intelectual

Se bem que nem mesmo Franz Kafka ou George Orwell ou Gilles-Abacaxi-Deleuze imaginariam uma sociedade como a nossa. Quer dizer, se tivessem imaginado, seria um dos grandes livros de todos os tempos, um best-seller de crítica. No Brasil temos este fenômeno: a do best-seller de crítica, o livro que todo crítico diz que devemos ler, mas que só poderá ser lido em detrimento de sua própria sanidade.

Pois bem. Veja só como são as coisas na minha cidade, a vitrine do Braziu. Vamos dizer que você decidiu que não quer mais ser só um reprodutor na vida. Então decide abrir uma farmácia. Claro que você toma esta decisão para ganhar dinheiro. Claro que você está contribuindo para o ciclo produtivo da sociedade, gerando empregos, oportunidades e todas aquelas coisas que exigem suor e trabalho, coisa que aqui no Braziu parece não ser bem vista. Mas na cabeça da maioria das pessoas você é um pária. Porque almeja o lucro, almeja ter uma vida material confortável, e quer colocar uma tevê de plasma na sua saleta, fruto do seu próprio suor e trabalho.

Se sua farmácia realmente só faz as vendas cobrando receita médica, fica às moscas, pois todo brasileiro acha que é seu direito se auto-receitar medicamentos, e quando você não respeita este direito adquirido, tratam logo de jogar lama no cidadão que está o insultando através do respeito às leis. Ainda assim, você decide só vender com receita. Então tá, até aí você Kafka ainda está entendendo a estória. Quiçá é a moral de um povo preguiçoso. Ou uma população que trabalha muito, mas só depois de estourar o prazo.

Só que não é verdade. Você tem muita gente ociosa que decide fazer trabalhos intelectuais. Eles produzem estudos e mais estudos, que ao invés de se valer de estatísticas e fatos para compor as observações, se valem de sentimentalismo e argumentos imediatistas e apelativos. Estes estudos começam provando que 1+2 = 4 e que você não pode ser mau, achar que está tudo bem, deixando de doar boa parte do seu lucro para a ONG de salários altos que ajuda os pobres, cujo grande objetivo é pedir leis para isso e para aquilo.

Um dia, decidem que precisam de leis que impeçam você de demitir seu funcionário que resolve criar o turno de 4 horas, apesar de receber para trabalhar 8. Como político não quer perder voto – e coitado do funcionário, ele ganha mal – aprova. No mês seguinte, descobrem que os impostos sobre os remédios devem ser aumentados porque você tem que transferir renda. Esta coisa de transferência de renda sempre foi estranha para mim, que ganhava tão pouco de mesada que recebia em espécie. Por que transferimos uma renda que nem vemos a cor do dinheiro? Deveriam chamar de transferência de suor e trabalho.

Um belo dia, um intelectual, destes que só voam de Airbus mas gostariam que todos voassem de ultraleve porque foi feito “por um brasileiro”, decide que o comerciante dono de farmácia é mau. Ele ganha dinheiro. Não, claro que não importa que você tenha trabalhado por ele, ou que seja seu direito gastá-lo como bem entende. Inclusive, naqueles dias de bom humor, você implanta uma Fundação Bill e Melinda Gates. Não, isso tudo não importa. Se você está ganhando dinheiro é porque tem maracutaia. Aonde ela estará? Depois de uma visita à Alemanha, o intelectual tem o insight sobre a verdade. Ora, farmácias só podem vender remédios se o ambiente estiver a belos 5º C. E também a purificação de ar tem que ter 0% de partículas de poeira, como nas salas limpas de produção de chips que o intelecoteco visitou em Zurique. Pronto: uma lei é rapidamente aprovada, com o nome bacana Remédio Tolerância Zero (RTZ). A legislação mais moderna para farmácias do mundo. A farmácia que atendê-la será exemplo até para aquele Império Podre dos Yankees.

Um aparte para entender por que estas leis são aprovadas tão rápido. É que todos burocratas ganham dinheiro com leis. Algumas vezes fazendo jogo limpo, mas criando uma teia de leis tão complicada que é impossível não depender deles, e da sua çabedoria para resolver alguma questão boba. Outras vezes, muitas vezes, cobrando propina mesmo. Uma parte deste dinheiro improdutivo vai para continuar a improdutividade em obras intelectuais e acadêmicas, e especialmente, para a compra de espaços em jornais e mídia para convencer você a ser bonzinho. Brasileiro tem que sempre ser o mais bonzinho possível... Como é que é? Você será contra ter as farmácias mais limpas e modernas do mundo, com 5º C e 0% de partículas de poeira? Partículas de poeira fazem mal. Pronto, esta feito o argumento irrefutável, exceto pelo bom senso...

Agora, além de sua farmácia arcar com mais impostos nos medicamentos, com 8 funcionários porque todos eles só querem trabalhar 4 horas, apesar de receber para trabalhar 8 – devidamente aconselhados pelo sindicato – e com menos clientela porque você não vende sem receita, você terá que arcar também com a satisfação de uma lei impossível de ser satisfeita. Você se descabela à noite. Percebe que ter a farmácia é o pior negócio do mundo. O melhor é ser burocrata ou pobre. No Braziu, a pobreza, aquela fictícia das favelas da Zona Sul onde o pobre coitado faz gato de Net (já imaginou, o miserável chulapento assistindo a GNT?), é um ótimo negócio. Farmácia não.

Na manhã seguinte, em casa, você já leu a defesa da RTZ, e que políticos e intelectuais acham a lei essencial, e que a Dona Maria acha muito importante 0% de partículas, imagina só ela pode ter um ataque alérgico na sua farmácia, e coisas assim. No auge do desespero, quando você pensa no tanto de suor e dinheiro investido na sua farmácia, e também porque bem ou mal você se preocupa com alguns dos seus bons funcionários que dependem de você para receber salários, você tem uma idéia: posso importar aquele equipamento um pouco mais barato, e deixar a farmácia a 5.5º C com 0.1% de partículas.

Bom, então aparece o fiscal. Ele é parte da nova agência de governo Implante RTZ. Para ser fiscal, ele mereceu seus direitos adquiridos. Fez uma prova, marcou xizinhos melhor do que alguém. Fiscal no Braziu é mais poderoso que Deus. Deus só cria e destroí. O Fiscal controla, regula. Pois bem, o Fiscal passa no seu negócio e diz que como os equipamentos que você importou da Alemanha (pagando 100% de imposto) só permitem 0.1% de partícula, eles não serão o suficiente. Não adianta você argumentar que não tem dinheiro para atender as exigências, que a farmácia não terá lucro algum se for manter o ambiente na RTZ, e ao mesmo tempo seguir todas outras leis. Ele responde: “o lucro não é um direito do cidadão”. Te dá uma alternativa: ao invés de tudo isso que tal se você der a ele 3000 reais por mês? Ele te explica que parte deste dinheiro irá para campanha dos políticos, que por sua vez irão aprovar orçamentos que incluirão redistribuição farta de dinheiro para a mídia e para os intelecotecos que defendem a RTZ. Você se recusa. Logo o Fiscal diz que não só você está com 0.1% de partículas como sua média de temperatura tem sido 5.2º C.

Desesperado porque você já investiu muitos anos da sua vida montando um negócio, ou criando alguma coisa que dá dinheiro, ao invés de viver de patrocínio ou de concurso público, você pensa em fechar a farmácia... Afinal, participar de um esquema de 3000 reais? Já é triste ter que usar um contador para fazer os impostos porque senão o lucro era ínfimo... Aí pensando em tudo isso, obviamente você pede um tempo. Descobre que todas as farmácias da sua rua aceitam pagar 3000 reais cada uma ao Fiscal.

Uma que se recusou a pagar é autuada em um flagrante espalhafatoso. Incrivelmente, repórteres da Globo e da Carta Capital, estavam lá no momento do flagrante. No mesmo dia à noite, intelecotecos condenam o farmacêutico que não segue a RTZ, e afirmam que apesar da legislação pedir o impossível, o impossível deve ser feito. Afinal é para bem do “povo”, tão desprotegido coitado. Um dia vou colocar o nome do meu filho de João Povão, porque todo mundo quer ajudar o “povo”, mas só quem faz parte dele é aqueles que concordam com os políticos e intelectuais de ocasião. No fim de semana, colunistas falam do “monstro das farmácias”, que quer matar os alérgicos, e desrespeita o povo.

Você sucumbe, desanima, e resolve pagar os 3000 reais. Custo de operação. Como seu lucro já é infinitesimal, parte deste custo tem que ser repassado ao consumidor mesmo. Claro que o custo do aluguel, que envolve o mesmo tipo de abusos, também é caro, e repassado ao consumidor. E assim por diante. Depois de tudo isso, quando você vai ver, seu lucro mensal é uns 10 mil reais. E você tem que dar duro todos os dias. Enquanto isso, o Fiscal que mora no seu prédio, faz uma inconfidência no elevador: ganha 10 mil reais por mês só com a rua onde fica sua farmácia. No dia seguinte, um intelecoteco lhe diz feliz no elevador que ganhou um patrocínio de 40 mil dólares da Petrobrás para fazer o desconstrucionismo da RTZ, e que foi convidado a ir à Alemanha por uma ONG e pela fábrica de purificadores de ar.

Você desmaia e empacota. No seu velório, os funcionários falam de como você era um patrão duro, que não queria dar participação nos lucros. Os intelecotecos, quando muito, lembram a fraqueza moral em não seguir a RTZ. A farmácia fecha. E o Braziu continua.

Esta estória é fictícia, mas baseada em fatos reais não comumente noticiados. Pergunte ao dono da farmácia da sua esquina.

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