por Reinaldo Azevedo
Há formas sutilmente autoritárias de silenciar o debate ou esmagá-lo. O mais corriqueiro hoje em dia é afirmar que se está falando em nome da ciência. Ela seria uma espécie de redutor de todas as contendas, anulando quaisquer outros princípios ou realidades, como ética, moral, crença religiosas etc. Diante dela, todo o resto estaria desautorizado. Assim, em questões que nos dividem, conviria convidar esse juiz neutro: o cientista. Sempre? Bem, imaginem a seguinte situação: quem é o melhor poeta moderno, Fernando Pessoa ou Yeats (podem botar um outro qualquer entre as alternativas)? E o melhor escritor brasileiro: Machado de Assis ou Guimarães Rosa? Ah, chamemos os cientistas. Eles saberão responder essas e outras questões. Os cientistas são como os bárbaros daquele célebre poema de Constantino Kafávis: quando eles chegarem, resolverão tudo. Não precisamos ter moral até lá. Os bárbaros a terão por nós.
Seria, claro, ridículo convocar a ciência para definir o melhor poeta moderno ou o melhor romancista brasileiro de todos os tempos, não? A questão é séria e ampla (!) demais para ser respondida por um conjunto de saberes supostamente inequívocos. Já com a vida humana, tudo parece mais fácil. Sim, um tanto constrangido por meu primitivismo, por este meu viés terrivelmente autoritário, atrevendo-me a falar quando deveria, obviamente, silenciar ou ser silenciado, ouso dizer que sou, sim, contrário a que seja o STF a definir a terceira situação em que o aborto seria legalmente permitido — as duas outras são em caso de estupro e de risco de morte da mãe. Não vejo como o tribunal possa acrescentar um dado novo ao Código Penal. Mas digamos que o entendimento seja o de que pode, sim, fazê-lo. A minha restrição não se restringe ao rito legal: é também de princípio.
E é nesse ponto que o debate sempre desanda. Na minha profissão, no meio em que vivo, e dadas as pessoas com as quais me relaciono, chega a ser quase exótico que me diga “católico”. Há até quem diga: “Ah, vai, Reinaldo, não é tanto assim, né?” Eu, de fato, não sei o que é ser católico “tanto assim” ou “tanto assado”. E também não tenho idéia sobre as fantasias das pessoas em relação a isso: será que rezo, que me mortifico, que acendo velas votivas? “Usa cilício (com “c” mesmo)?”, já me perguntaram. Talvez imaginem que minha opinião em relação ao aborto tenha uma dimensão sobrenatural, com toda a cadeia de horrores conseqüentes — segundo imaginam alguns —, caso eu contrarie as “determinações” de minha fé. Bem, tudo isso é bobagem e, como já disse, fantasia.
Incomoda-me e constrange-me, aí sim, a qualidade de alguns argumentos que, acredito, degradam a vida humana, tornando-a não mais do que derivação de escolhas práticas, pragmáticas, segundo as teses influentes da hora. O cristianismo foi mesmo só essa história de horrores escrita pelos iluministas? Olhem, há uma vasta bibliografia indicando que não. E nem vou, neste texto, estender-me sobre o assunto. Eu, de fato, não me sinto à vontade — e suponho que não me sentiria nem que fosse ateu ou agnóstico, mas não tenho como prová-lo, obviamente — para decidir que vida, em que quantidade e em que condições, merece ser vivida. Sinto-me um juiz insuficiente. Outros são mais sábios do que eu. Sentem-se tão certos em sua ciência como estariam em um "budismo qualquer". Louvo-lhes sabedoria ou ligeireza. Mas é outra a minha natureza.
Quando digo que a minha restrição principal nem é a religiosa, não estou, de modo algum deslegitimando aqueles que protestam e se organizam em nome da sua religião. Salvo engano — e até que não prospere, sei lá, um modelo chinês no Brasil, que tem uma igreja única: o partido —, tais manifestações fazem parte da vivência democrática. E são legitimas.
Quando se debateu a legalização das pesquisas com células-tronco embrionárias, assistimos a um formidável show de intolerância. Dos católicos, que se manifestaram contra? Não! Daqueles que acusavam a ilegitimidade dos protestos católicos, acusados de maximizar a decisão, vendo nela a ante-sala da legalização do aborto. O então relator da questão, ministro Ayres Britto, escreveu com todas as letras: “A vida humana é revestida do atributo da personalidade civil, é um fenômeno que transcorre entre o nascimento com vida e a morte cerebral". E isso contou com a aprovação da maioria do tribunal. Ora, não há aí qualquer ambigüidade, há? O que ainda não foi expulso do útero, segundo o texto, vida humana não é. Não posso assegurar que se vá fazer com isso o horror, mas há aí uma janela inequívoca para ele.
A tendência é que o STF se comporte, nesse caso, como se comportou no das células-tronco. Marco Aurélio de Mello, Celso de Mello e Ayres Britto certamente se posicionarão a favor do aborto em caso de anencefalia. É o que se pode deduzir lendo entrevistas que concederam sobre assuntos correlatos. Joaquim Barbosa, consta, também. Tendem a se opor Carlos Alberto Direito, Cezar Peluso, Eros Grau e Ricardo Lewandowski. O desempate ficaria para duas ministras, Ellen Gracie e Carmen Lúcia, e, eventualmente, para o presidente da Casa, Gilmar Mendes.
Posso ser pessimista — e, no geral, acho uma atitude intelectualmente prudente, embora não moralmente superior ao otimismo —, mas não sou apocalíptico. Os petralhas já começaram a gritar: “Vai perder, vai perder de novo...”, como se fosse um campeonato. Huuummm, não perco nada pessoalmente. Se o argumento principal que defende o aborto dos chamados fetos anencéfalos buscasse realmente preservar a mãe — ou, mais amplamente, a família — de um roteiro de sofrimento certo, eu poderia até apontar um erro de princípio, mas compreenderia a questão no âmbito de nossas (as humanas) inevitáveis fraquezas.
Na forma como está posto o debate — mais uma vez, vai-se definir o que é “a” vida —, em vez da fraqueza que humaniza, a arrogância que constrange. Mas não é o apocalipse. O humanismo prosperou em meio a adversidades. O cristianismo também. São batalhas de fôlego longo.
Para arrematar
Observo, finalmente, que, mais uma vez, os católicos são acusados — e logo alguém evocará o papa em tom panfletário — de obscurantistas e autoritários porque, dizem, pretenderiam impor a sua religião a um estado leigo etc, etc, etc. Não pretendem nada! Eles apenas dizem o que pensam e expressam um ponto de vista, direito que assiste até mesmo a Federação Nacional dos Fabricantes de Polainas — ou será que aqueles deveriam ter menos prerrogativas do que estes?
E noto ainda: não entendo por que a, vá lá, “nossa” aprovação, em questões como essas, é tão importante. Querem distribuir camisinhas nas escolas. E distribuem. Lamentam que os católicos sejam contra, uma gente que vive mesmo na Idade Média... Querem distribuir pílulas do dia seguinte a meninas, mesmo sem o conhecimento dos pais. E distribuem. E dizem: “Esses católicos são realmente do arco-da-velha” (de fato, do Arco da Velha Lei, ou da Lei da Velha Arca). Querem, e o movimento é este, legalizar o aborto, mas, antes, exigem que os católicos entendam que etc, etc, etc. Oram, façam suas políticas — para tanto, são livres de peias, num estado laico —, e deixem que os católicos se manifestem. Por que é preciso ter a sua anuência?
Às vezes, parece que os próprios defensores de tais práticas só se sentiriam de fato convencidos se, antes, convencessem “os católicos”, por quem nutrem, não obstante, indisfarçável desprezo. Não podendo fazê-lo, então optam por outra forma sutil de censura: tentar ridicularizá-los como seres que rejeitam o aporte da ciência e que advogam um mundo de trevas.
Assim é se lhes parece. E, no entanto, não é.
Tarefa impossível...
Há 3 semanas
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