sábado, 16 de agosto de 2008

Rússia, Ocidente e apologia da desonra

por Reinaldo Azevedo

Já citei aqui, há muito tempo, um trecho, na tradução brasileira, de O Homem Sem Qualidades, de Robert Musil. Ele tenta identificar quando estamos diante de uma nova era: “Algo imponderável. Um presságio. Uma ilusão. Como quando um ímã larga a limalha, e esta se mistura toda outra vez. Como quando fios de novelos se desmancham. Quando um cortejo se dispersa. Quando uma orquestra começa a desafinar. (...) Idéias que antes possuíam um magro valor engordavam. Pessoas antigamente ignoradas tornavam-se famosas. O grosseiro se suaviza. (...) havia apenas um pouco de ruindade demais misturada ao que era bom, engano demais na verdade, flexibilidade demais nos significados (...)

Como se vê, o que vai acima é um conjunto de metáforas e percepções aparentemente desconexas, mas que dizem de modo inequívoco: alguma coisa está se perdendo... já se perdeu.

Temo mesmo — meu lado apocalíptico? — que o Ocidente esteja perdendo alguma coisa... já perdeu. O que é “o” Ocidente? Defino o meu: a sociedade que considera a democracia representativa inegociável, que garante os direitos individuais, em que as decisões coletivas visam à preservação desses direitos.

Esses são nossos fundamentos, nossa “Constituição”. Mas ela traz em si alguns riscos, não é? Porque nos garante a liberdade de visitar outros mundos, outras idéias, outras concepções, sempre se pode flertar com seus inimigos, com aqueles que cultivam valores que solapam as bases de sua existência. Não custa lembrar: o século passado foi marcado pela luta desse Ocidente livre contra forças internas aliadas do comunismo. O comunismo, na sua forma original, acabou, é evidente — a China que o diga. Mas remanesce a tentação, no Ocidente (aquele de que falo), de flertar com outros mundos.

Rússia

O comportamento da imprensa ocidental diante da invasão da Geórgia pelos russos faz-me vislumbrar aquela suave degradação de que trata Musil — ou aquela perversa agregação de valores rebaixados, subtraídos de sua essência. O dado mais escandaloso da abordagem feita pela imprensa livre — que coincide com a leitura da imprensa russa, que livre não é — é o dedo acusador contra os Estados Unidos e, ora..., seu presidente, George Bush. Tão logo o mandatário do principal fiador das democracias ocidentais reagiu à invasão, jogaram-lhe na cara: “Como pode o Bush que contrariou a decisão da ONU, ao invadir o Iraque, censurar a Rússia? Com que moral?”

Bem, em primeiro lugar, não contrariou a ONU coisa nenhuma, que não deu aval para a invasão do Iraque, mas também não vetou. Em segundo lugar, houve uma coalizão de países, goste-se ou não dela. Em terceiro, não foi uma invasão feita da noite para o dia, sem qualquer comunicação prévia. Em quarto, foram dadas algumas precondições para evitá-la, que o tirano Saddam Hussein se negou a cumprir. Em quinto, está documentado, o próprio governo iraquiano plantava mentiras sobre seus armamentos. Em sexto, o Iraque estava pronto para ser abrigo de terroristas; Em sétimo, tratava-se de um facínora fora de controle. Vá lá. Nada disso justificava a invasão? A emenda saiu pior do que o soneto? Pode ser. Podemos divergir sobre tudo o que vai acima, é óbvio. Mas o que isso tem a ver com a Rússia?

Até a independência de Kosowo entrou na jogada para conferir razoabilidade à invasão russa. Sim, se eu votasse naquele caso, teria sido contra. Até cheguei a fazer uma graça qualquer, lembrando a piada do pessoal do Casseta & Planeta sobre “Os Povos Desconhecidos que Ninguém Conhece”. A facilidade com que, por ali, se alega alguma divergência, sei lá, do século 11 para reivindicar a independência de uma aldeia é impressionante.

E por que se lembrou de Kosowso? Ah, se os EUA apoiaram a sua independência, então deveriam fazer o mesmo com a Ossétia do Sul. Se isso tem importância (eu acho que não tem), acato como lógico o raciocínio. Mas e da Rússia? Não se cobra o mesmo? Se o país foi contra o separatismo de Kosowo, por que é favorável ao da Ossétia do Sul?

Nada com isso

Não, senhores! O Ocidente — e os Estados Unidos — não têm nenhuma responsabilidade factual ou moral com o que acontece na Geórgia. Vamos condenar Washington por ter tentado atrair o país para a sua órbita de influência (faz o mesmo com a Ucrânia e com a Polônia)? Bem, não condeno. Aplaudo. Acho que é isso mesmo que deve ser feito. Porque prefiro esses países — e, se possível, todos os outros — sob a influência das democracias ocidentais. “Ah, mas a Casa Branca deu com os burros n’água”. E daí? Em que a impossibilidade de os americanos ajudarem militarmente a Geórgia, sem que levasse o mundo à beira do abismo, mudaria o caráter da ação russa, sua brutalidade, seu desprezo por qualquer dos valores que nos são caros? Em nada! “Os EUA que não tentassem atrair a Geórgia”. Entendi: como diz um funk insuportável, ouvido por alguns idiotas a todo volume nas ruas, “Ado, ado, ado, cada um no seu quadrado”.

Ok. Cada um no seu quadrado? Então eu escolho o meu: e o meu quadrado é o das democracias ocidentais, que precisam de quem as defenda. E noto a propósito: há uma diferença brutal de clareza entre John McCain e Barack Obama no que concerne à questão russa. O candidato republicano censurou o Kremlin com palavras insofismáveis. Obama? Usou variantes do seu “change”. A tática do democrata tem sido esta: quando não sabe o que dizer, afirma que a pergunta está errada.

Desmoralizados

Os críticos dos Estados Unidos — e, na prática, benevolentes com Vladimir Putin — foram desmoralizados pelo próprio governo russo. Este já deixou claro que não reconhece a integridade territorial da Geórgia e que dará apoio objetivo, militar, à “independência” da Ossétia do Sul e da Abkházia. A precipitação da crise serviu apenas para apressar o que já estava em curso.

Só isso? Não! O chanceler russo ameaçou — a palavra é essa — todas as nações da região que censuraram a invasão da Geórgia, em especial os países bálticos e a Ucrânia. Na prática, é como se dissesse que a independência conquistada com o fim da União Soviética é mais retórica do que real. E nem assim Putin viu seu prestígio cair na imprensa ocidental. Continua a ser tratado como um fino estrategista, quase um mago, uma espécie de redenção do velho império soviético, finalmente capaz de arrostar, de novo, com o inimigo ocidental: os EUA. Em parte é verdade. Curioso que se veja “o inimigo” com olhos... russos — ou, ainda, soviéticos.

E o tal Ocidente vai fazer o quê? A frase emblemática, infinitamente mais ampla, é certo, em horas assim é a famosa frase de Churchill referindo-se ao acordo celebrado por Chamberlain e Dalladier com Hitler: “Entre a desonra e a guerra, eles escolheram a desonra e terão a guerra”.

A palavra de ordem, nestes tempos em que se forja aquela “nova era” de que fala Musil, é escolher a desonra para evitar a guerra...

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