quinta-feira, 14 de agosto de 2008

Sem liberdade

por Bruno Garschagen n'O Globo, 11/08/2008
via O Insurgente


Num dos mais vigorosos romances da literatura mundial (Crime e castigo, de Dostoiévski), o protagonista Raskolnikov legitimou a morte de uma velha usurária sob o argumento de que certas pessoas mereciam morrer pelo bem da humanidade. Estudante de medicina, ruminou uma teoria segundo a qual certos homens, por seu intelecto superior, estavam isentos de leis morais. Não deu outra: rachou o crânio da velhota com um machado.

Não é novidade na história a criação das teses mais infames para legitimar toda a sorte de iniqüidades. O grande perigo dessas idéias é que muitas têm um método lógico. Mas o método nem sempre conduz à verdade, já apontara Eric Voegelin no estupendo A nova ciência da política. Mais do que isso: a falácia transformou períodos da história num grande cemitério de vítimas úteis.

O fenômeno novo a se considerar é o desenvolvimento econômico usado por governos fortes para legitimar seus vícios, como o autoritarismo e a violação de liberdades civis e dos direitos humanos. O desempenho da economia foi convertido em instrumento de legitimação de poder.

A China, que sedia os Jogos Olímpicos 2008, é o exemplo claro de país cujo impressionante crescimento econômico é usado como habeas corpus perante a sociedade internacional e ao seu povo. Se antes o poder no país era legitimado na figura de Mao Zedong, as reformas econômicas sem democracia realizadas por Deng Xiaoping deslocaram a fonte de legitimidade para o desempenho da economia.

Qual é o busílis? Para além da repulsa que todo homem civilizado deve manter contra poderes que violam os indivíduos em nome de um projeto de reengenharia política e social, o impressionante crescimento econômico chinês sequer foi capaz de melhorar a vida da maior parte dos cidadãos, que chafurdam na miséria. Só uma pequena parcela dos indivíduos que vivem sob essa autocracia liberal (na precisa definição de Fareed Zakaria) é beneficiada pelos investimentos e aumento da renda per capita.

Nem as reformas e o crescimento fizeram da China um país com liberdade econômica. No índice 2008 da Heritage Foundation ocupa um vergonhoso 126° lugar; no Economic Freedom of the World, dos institutos Fraser e Cato, ocupa a 95ª posição. Liberdades civis e direitos políticos? Necas. Desde 1998 é classificado como um país not free (sem liberdade) pelo think thank Freedom House (The worst of the worst: the world’s most repressive societies 2008).

A China, quanto mais se fortalece economicamente, mais fragiliza as liberdades de seus cidadãos. Porque tratar o crescimento econômico como um fim em si mesmo abre uma vereda para todo tipo de ataque contra os indivíduos e os modos de vida (leiam O desenvolvimento como liberdade, de Amartya Sen). É o método do governo chinês para justificar a restrição dos direitos como garantia da unidade, paz e segurança do país. Os comunistas chineses, assim como Raskolnikov, se vêem como seres superiores e isentos de leis morais.

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