terça-feira, 26 de agosto de 2008

Sobre pão e cultura

por Pedro Sette Câmara, no Ordem Livre

O dinheiro é uma espécie de linguagem – a verdadeira linguagem universal. Pagar por algo nada mais é do que atribuir-lhe um valor usando um código reconhecido por todos. Pago sem pestanejar por meu ingresso de cinema porque atribuo a ele um valor até maior do que o sugerido. Para mim, é vantajoso ver certos filmes pelo valor estabelecido. Isso pode ser dito de outra maneira: gosto de “conversar” com certos filmes. Mas essa conversa se estende a várias pessoas: o dono e os empregados do cinema, da distribuidora, do estúdio que produziu, e até com o diretor e o elenco. A linguagem circula. Eu recebo algo, e dou algo em troca. Todas as partes julgam ter recebido um bem – ou simplesmente não teriam entrado na conversa.

Essa conversa universal, que antecede a internet em milhares de anos e se chama mercado, depende de uma belíssima atitude, que é a atenção ao outro. Nessa conversa, não podemos impor nossas idéias nem nossas palavras, sob o risco de morrer de fome. Para obter um pão, preciso dar ao padeiro o que ele quer – o dinheiro do pão. O padeiro, igualmente, precisa me oferecer o pão que eu desejo, não o pão que ele deseja, nem o que ele acha melhor. É o meu gosto que tem de ser atendido. E assim como um filme depende do trabalho de centenas e até milhares de pessoas para chegar até mim, o pão também depende de muita gente, desde aqueles que plantaram o trigo até a moça do caixa.

Imagine, porém, que os clientes de pão sejam bem poucos. Dezenas, talvez. Todos eles têm muito mais dinheiro para gastar com pão do que uma pessoa comum. Em vez de comprar um pouco de pão todo dia, eles compram esporadicamente vastas quantidades de pão. Os padeiros só precisam agradar a eles. Os padeiros só precisam dizer o que esses clientes querem ouvir. O primeiro e mais evidente resultado é que a variedade de pão diminui, e aqueles que não o consomem logo começam a confundir a idéia mesma de pão com dois ou três tipos dele. Os clientes que só poderiam comprar pão em pequenas quantidades, ainda que diariamente, percebem que os produtores não estão conversando com eles, não estão nem mesmo dirigindo-lhes a palavra, e, sem a menor belicosidade, acabam até esquecendo que o assunto existe.

Sinta-se agora à vontade para fazer uma analogia com o desinteresse de grande parte do público pelo “cinema brasileiro”, como se ele fosse um gênero e não um acidente geográfico, e, caso mais grave, pelo teatro em si. A situação hipotética dos pães é análoga a qualquer situação em que haja

Essa situação hipotética é análoga à situação real criada pela Lei Rouanet e pelas dificuldades de empreendimento, inclusive cultural, existentes no Brasil. Os produtores culturais aprovam seus projetos – e, justiça seja feita, o Ministério da Cultura não é de sonegar aprovações – e vão buscar patrocínio, que é concedido por meia dúzia de diretores de marketing. Ou então os produtores vão em busca de editais para ter seus projetos julgados por comissões. De qualquer jeito que se olhe, o cliente final de cada projeto é o diretor de marketing ou a comissão, pois deles é que o projeto depende. O cliente não é o público em geral, nem um segmento deste, mas o microscópico segmento daqueles que têm poder de liberar verbas – de comprar vastas quantidades de pão de uma só vez, e que não o fazem todos os dias. O grande público permanece alheio não por ser ruim, mas por ter sido sistematicamente alienado desde o início. É só por acidente – um acidente bem vindo, mas ainda assim um acidente – que ele se interessa por um desses produtos culturais que não esperam que ele contribua de maneira decisiva para a conversa. Isto é, que contribua com seu dinheiro, atribuindo valor ao que está ouvindo.

É também por isso que, apesar de ter dois terços da população dos EUA, o mercado cultural brasileiro é dezenas de vezes menor: porque a conversa está restrita a muito pouca gente. Essa restrição nasce do narcisismo artístico que considera que agradar ao público é uma espécie de rebaixamento e que sua atividade é digna de privilégios, de um tratamento diferenciado. Ninguém acharia que um padeiro que pretende fazer pães que ninguém quer comprar merece privilégios, mas por um produtor ou diretor que queira fazer um filme ou uma peça que ninguém quer ver merece um subsídio indireto. Como no narcisismo, essa atitude fecha essas pessoas em si mesmas: o diretor pode atribuir a si o salário que quiser, em vez de ter o valor de seu trabalho atribuído por outra pessoa, como acontece com todo mundo. Cria-se uma situação sem risco, na qual só quem está no topo ganha muito dinheiro e ninguém perde. Ninguém aposta. Nem o diretor de marketing, nem as comissões, porque estão lidando apenas com o dinheiro dos outros. E isso contribui para tornar as obras ainda mais ininteligíveis: sem a necessidade de ser aceito e entendido, de levar o outro em consideração, os artistas podem pirar à vontade. O Brasil precisa, isso sim, do investidor cultural: aquele que vai prestar a máxima atenção no público e vai assumir pessoalmente os riscos de produção de qualquer obra. Dessa maneira, as obras vão ganhar relevância, vão inserir-se na vida, vão dirigir-se a pessoas e vão obter respostas. E a nossa produção cultural, que já vem sofrendo os efeitos nefastos dessa pouca circulação, desse cruzamento perpétuo entre as mesmas pessoas, vai passar a desfrutar de todos os benefícios da variedade genética.

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