João Pereira Coutinho, na Folha
Confesso: tenho assistido aos Jogos Olímpicos. A culpa não é minha. A culpa é da diferença horária: quando vou para a cama, Pequim está acordado. Deitado no leito, com a tv ligada, acompanho os exercícios. E a insônia vem a seguir.
Insônia por que? Por causa dos atletas chineses. Nada tenho contra chineses. Mas é difícil resistir ao rosto dessa gente. Americanos, russos, europeus, brasileiros - tudo gente normal, com as alegrias e tristezas de gente normal. Mas os chineses são outra história: o rosto exibe uma tensão e uma infelicidade que não se encontram nos outros. E quando falham, isso não representa uma derrota para os atletas. Representa uma tragédia de contornos apocalípticos. Como explicar o fenômeno?
Infelizmente, com política. Os Jogos não são mero desporto para a China; são uma forma do regime mostrar superioridade perante o mundo (tradução: perante os EUA), vencendo mais medalhas e apresentando uma organização imaculada, onde o fogo de artifício é gerado por computador e crianças inestéticas são dubladas por rostos mais fotogênicos. Um atleta chinês, quando entra em cena, está em guerra diplomática. Perder é morrer.
Mas existe uma razão adicional e pessoal: há trinta anos que a China persiste na sua política do filho único como forma de limitar a explosão demográfica. E essa política tem um preço: quando os casais têm um único filho, a pressão e as expectativas de sucesso aumentam, esmagando os desgraçados. A China criou uma juventude admirável: pequenos monstros que jogam a existência, sua e dos progenitores, em cada prova desportiva ou académica.
A revista "Psychology Today" relembrou recentemente alguns números a respeito. Números que arrepiam. Anualmente, as universidades chinesas produzem 4 milhões de diplomados. Mas a China, apesar do boom económico, apenas consegue absorver menos de metade. O desemprego é o caminho para a maioria, isso numa cultura que nunca tolerou pacificamente o fracasso.
Moral da história? Para começar, o suicídio é a primeira causa de morte entre os chineses mais jovens (entre os 20-35 anos); e só entre os universitários, 25% têm recorrentes pensamentos suicidas (nos EUA, por exemplo, só 6%). Conta a revista que a China lidera os problemas psiquiátricos entre crianças e adolescentes, com 30 milhões a necessitar de acompanhamento psicológico, que aliás não existe: uma das heranças perversas da tirania de Mao foi percepcionar os problemas psicológicos como "anti-socialistas", enviando os "reacionários" problemáticos para campos de trabalho.
Sim, o Brasil pode lamentar as medalhas perdidas. Mas existe um prémio de consolação: os jovens brasileiros entram e saem da China com a cabeça intacta. A sanidade vale ouro.
Tarefa impossível...
Há 3 semanas
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