por Rodrigo Constantino
“O que sempre fez do Estado um verdadeiro inferno foram justamente as tentativas de torná-lo um paraíso.” (Hoelderlin)
Um dos maiores sonhos de muita gente é ter a casa própria. Naturalmente, casas não custam pouco. Pensem no Robinson Crusoé sozinho na ilha, tendo que construir sua casa por conta própria. Não é nada fácil, nem mesmo uma simples cabana sem luxo. Logo, parece natural que a casa não seja um bem facilmente acessível a todos. Mas justamente por ser o sonho de tanta gente, e não ser fácil realizá-lo, os políticos costumam prometer casas para receber votos em troca. Esquece-se que o “direito à moradia” implica no dever de alguém pagar por isso. E o governo acaba criando inúmeros mecanismos que facilitam direta ou indiretamente a compra da casa própria, principalmente pelos menos afortunados. Ocorre que o governo não produz riqueza, apenas tira com uma mão para dar com outra. Suas intervenções quase sempre distorcem os incentivos no mercado, muitas vezes com resultados terríveis. Isso pode ser parte da explicação para esta crise financeira que vem afetando a economia americana.
Quem tem certa idade lembra-se do fracassado BNH, que financiava o sonho da casa própria no Brasil. O programa deu errado e custou muito para os pagadores de impostos. Mas a mistura de populismo com sonho da casa própria não é monopólio nacional, e existe nos Estados Unidos também. Tornar as casas “acessíveis” tem sido uma meta de todo governo americano, resultando em inúmeros programas e leis. A palavra mágica “acessível” ignora o funcionamento do mercado, que se caracteriza pela livre formação de preços, justamente para permitir escolhas individuais com base sempre em trade-offs. Quando o governo resolve tornar um bem “acessível”, ignorando seu preço de mercado, ele está impedindo o funcionamento adequado do próprio mercado, anulando sua função básica. Ora, o governo pode tornar qualquer bem “acessível”, até mesmo um Rolls Royce. Basta ele destinar recursos tirados de outros locais para subsidiar a produção deste bem específico. Mas isso não pode sair de graça. A única forma de o governo tornar um bem mais acessível é fazer com que outro bem fique menos acessível, destruindo no caminho a liberdade de escolha individual para fazer trocas com base na realidade do mercado. Alguma visão política qualquer, decidida de forma arbitrária por aqueles no poder, substitui a livre escolha dos indivíduos.
A casa própria costuma ser um desses bens escolhidos pelos políticos para ignorar a realidade de mercado. Se seu preço, com base na realidade que leva em conta os fatores de produção e as preferências individuais, impede que uma camada mais pobre da população possa comprar o bem, então o governo entra em cena, como o “herói salvador”, permitindo a compra através de um preço mais acessível. Como não existem milagres nas contas públicas, isso deve ser pago de alguma forma, ou prejudicando outros setores, ou criando uma situação insustentável no setor de casas, inflado artificialmente. Muitas pessoas que em condições normais não poderiam comprar uma casa, passam a ter acesso através da ajuda do governo. Mas como não existe almoço grátis, a conta deverá ser paga algum dia, de alguma forma. Essa não é a única explicação, e talvez nem a mais importante, para a crise americana atual. Mas sem dúvida os incentivos estatais exerceram alguma influência na festa que acabou em ressaca.
Parece curioso tanta gente afirmando que faltou regulação para evitar a crise, se o epicentro da crise foi justamente um setor extremamente regulado como o setor de casas. O governo americano tem sido bastante hiperativo quando o assunto é estimular a compra da casa própria, especialmente pelos mais pobres e mais jovens. De 1994 a 2004, a taxa de crescimento no índice de propriedade de casas para indivíduos com menos de 35 anos foi de 15,5%, bem maior que a taxa para as demais faixas etárias. O crescimento foi bem maior para o grupo dos hispânicos também. Tanto o governo Clinton como o governo Bush promoveram programas destinados à ajuda de jovens e pessoas de baixa-renda na compra de uma casa. Em 1997, por exemplo, a administração Clinton aprovou uma lei permitindo um ganho de capital livre de impostos para a venda da casa principal até o valor de US$ 250.000.
O governo federal também contribui para a compra de casas através da autorização aos estados e governos locais para emitir títulos de hipoteca livres de impostos, os mortgage revenue bonds. Somente esses títulos ajudaram a financiar mais de 100 mil compras por indivíduos de baixa-renda nas últimas duas décadas. Em 1990 foi aprovado o National Affordable Housing Act, e vários outros programas foram derivados deste ato. O Department of Housing and Urban Development (HUD) criou três programas para ajudar na compra da casa própria: HOZ, HOME e SHOP. De acordo com um estudo feito pelo HUD, entre 1992 e 2002 mais de US$ 3 bilhões do HOME ajudaram 270 mil indivíduos de baixa-renda na aquisição de sua casa. Em 2003, a gestão Bush aprovou o American Dream Downpayment Initiative Act, autorizando até US$ 200 milhões de ajuda aos interessados na compra de sua primeira casa. A expectativa era ajudar no financiamento de 40 mil casas por ano.
Esses exemplos são apenas uma pequena amostra, para deixar claro como o governo cria mecanismos de incentivo para a aquisição da casa própria por aqueles indivíduos de menor renda. Logo, trata-se de um setor com bastante intervenção estatal, principalmente quando lembramos que as gigantes hipotecárias foram criadas pelo governo e contavam com sua garantia. Este ponto é extremamente importante, pois essa garantia possibilitou uma alavancagem absurda por parte dessas empresas, de até 50 vezes o capital próprio, fazendo com que elas pudessem assim financiar muito mais gente do que seriam capazes se fossem obrigadas a seguir as forças de livre mercado.
Mas isso não é tudo, apesar de não ser pouco. Um dos principais custos de uma casa financiada é a taxa de juros da hipoteca. Quando o Federal Reserve mantém a taxa básica de juros num patamar muito baixo, por tempo demais, ele cria um forte estímulo ao financiamento da casa própria. Foi justamente o que fez a gestão Greenspan, que segurou a taxa de juros próxima de 1% ao ano por um longo período. Para jogar mais lenha na fogueira, o governo criou regras que dificultaram a compra de ações por parte de grandes investidores como os fundos de pensão, após o crash da bolha de internet. Ou seja, justamente quando o valor das ações estava na “bacia das almas”, os investidores de longo prazo tiveram restrições maiores para apostar em sua recuperação. Somando-se a isso uma taxa de juros absurdamente baixa, a busca desesperada por mais retorno em veículos alternativos foi o único resultado possível. E para piorar um pouco mais o quadro, a regulação estatal cria enormes barreiras para investimentos sem o rating “adequado” das agências de risco. A soma de uma demanda enorme por mais yield com um entrave regulatório de rating resultou no inevitável: produtos criados para atender esta demanda.
Os títulos de securitização de hipotecas com grande mistura de qualidade de devedores no mesmo bolo foram a resposta dada pelo mercado financeiro para atender esta demanda. Com o carimbo de crédito seguro por parte das agências de risco, e uma taxa de juros acima dos demais títulos com o mesmo patamar suposto de risco, esses bonds fizeram a festa de muito especulador. Poucos perderam tempo para questionar porque recebiam mais pela mesma unidade de risco. Naturalmente, não era o mesmo risco, e isso ficou bastante evidente depois do estouro da bolha. Mas a ganância faz parte da natureza humana, o que explica a especulação agressiva por ambos os lados, credores e devedores desses títulos.
Existem outros fatores envolvidos no desenrolar desta crise financeira. Mas estes pontos mencionados acima explicam boa parte do problema. E na origem de tudo, talvez esteja o sonho da casa própria, sem a devida noção de que sonhos não costumam se realizar num estalar de dedos. Sonhos exigem esforço, trabalho duro, poupança, como aprendemos desde criança com a história dos três porquinhos. Aquele que quer pular etapas e evitar o trabalho duro acaba com uma casa de palha, destruída facilmente por qualquer vento mais forte. Se o governo pudesse realizar nossos sonhos com sua “caneta mágica”, o paraíso seria aqui. Infelizmente, ele não pode, e normalmente são essas tentativas de fazê-lo que causam tanto estrago. Agora, o sonho da casa própria ficou mais distante para muitos americanos, e um dos principais motivos foi a “ajuda” do governo. O pior é que muita gente está demandando mais governo para resolver os problemas que ele contribuiu para criar. Não funciona assim. Devemos encarar os fatos da realidade, entender que a casa caiu, quais as causas por trás disso, para podermos consertar as falhas e partir para a construção de um futuro melhor.
Tarefa impossível...
Há 3 semanas
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