sexta-feira, 26 de setembro de 2008

O mito do Che

por Lorenzo Bernaldo de Quirós
no Ordem Livre


A estréia mundial do filme Che: El Argentino, de Steven Soderbergh, é uma excelente oportunidade para devolver a figura de Ernesto Guevara, um dos ícones sagradas da esquerda do século XX, à sua dimensão verdadeira. Enquanto vivia, era considerado o mais idealista, abnegado e puro dos dirigentes cubanos. Virou mártir na plenitude da vida, o que permitiu desligá-lo e preservá-lo dos fracassos e crimes do socialismo real. Transformou-se assim num mito em que se combinam os traços de um Cristo laico com os do bom revolucionário. Não obstante, a vida e a obra do Che simbolizam a tragédia da utopia comunista: uma bela mulher com a cabeça nas nuvens e os pés em um pântano de sangue e miséria. Guevara encarna melhor do que ninguém esse terrível paradoxo, e sua personalidade adquire, com o passar do tempo, tons mais sinistros e patéticos do que heróicos.

Che Guevara sempre quis ser lembrado como um “condottiero do século XX”. Disse isto a sua mãe em uma de suas últimas cartas, enviadas da selva boliviana. Apesar das tentativas de intelectualizar o personagem feitas por Régis Debray em A revolução na revolução e por outros apologistas, Guevara não deu nenhuma contribuição teórica ao marxismo. Ele era um homem de ação, um aventureiro fascinado pelas armas e pela violência, como testemunha sua primeira experiência de guerra, o bombardeio da Cidade da Guatemala. A causa revolucionário era um motivo para justificar sua existência, e era um fim em si mesma. Para ele, a revolução era um processo destrutivo permanente e justificado por sua própria dinâmica. Sua consolidação e suas conseqüências nunca lhe importaram. Essa foi uma das causas de sua saída de Cuba em busca de novos horizontes.

Sempre houve uma distância intransponível entre o Che e aqueles a quem ele pretendia libertar. Os trabalhadores e camponeses por quem dizia lutar não tinham nenhum papel na perspectiva guevarista. O indivíduo concreto, suas necessiadades e aspirações não lhe interessavam, nem as famosas condições objetivas que, segundo a doutrina marxista, possibilitavam ou não a revolução. Amava tanto a humanidade que em seu nobre peito não cabiam os homens com h minúsculo. Considerava os trabalhadores cubanos “dentes de uma engrenagem” e aos guerrilheiros “abelhas numa colméia”. O desprezo de Guevara pela realidade e pelos seres humanos levou-o a cometer nebulosos erros de julgamento, como oferecer terras aos camponeses congoleses, que já as tinham em abundância, ou coletivizar as terras de que os bolivianos se tornaram proprietários com as reformas agrárias do MNR (Movimento Nacionalista Revolucionário). Sua incompreensão da ingratidão dos “gulags” bolivianos está amargamente refletida no Diário da Bolívia e fui uma das razões de sua morte: os camponeses o denunciaram às autoridades e contribuíram de maneira decisiva em sua captura.

Na prática, a filosofia vital de Guevara era uma versão da velha doutrina e estética do culto ao herói, ao líder carismático, a uma espécie de super-homem nietzscheano de aroma indubitavelmente estalinista e fascista. Isso se traduziu em um desprezo pela individualidade dos demais e conduziu de maneira inexorável à repressão. Se o “homem novo” não surgia pela imitação do exemplo dos santos guerrilheiros, era necessário fabricá-lo usando a força. Por isso o rosto autoritário do Che rapidamente apareceu. Sua mão não tremia na hora de “fazer justiça” com os mais próximos, nem de ordenar milhares de execuções de adversários. Em 1960, criou o primeiro campo de concentração do regime castrista, chamado Guanahacalibes, destinado à “reeducação pelo trabalho”. O lendário idílio com os camponeses da lenda guevarista se traduzia, nas palavras de Guevara, em “terror planificado” quando eles se mostravam insensíveis a seus planos salvadores. O Che não queria sujar as mãos, mas não lhe causava repulsa manchá-las de sangue. Freqüentemente dizia, parafraseando Sartre: “são elegantes as luvas vermelhas”.

Sua crença em sua capacidade de atingir qualquer objetivo independentemente das restrições impostas pela realidade e pela lógica teve uma expressão dramática em sua lamentável gestão da economia tanto no Banco Nacional de Cuba como depois no Ministério da Indústria. Sua ignorância econômica, unida à introdução da centralização burocrática, à abolição do mercado e a seu desejo de substituir os incentivos materiais pelos morais no comportamento dos indivíduos e das empresas, levaram ao colapso econômico e a um rápido empobrecimento da população. No fim da década de 1960, Cuba tinha sérios problemas de fornecimento de energia, escassez de comida e de outros produtos básicos, levando ao sistema de racionamento ainda vigente. Não havia à época o embargo americano, isto é, o inimigo externo não pode ser usado como pretexto para explicar o desastre, tão grande que forçou a ortodoxia marxista a formular, pelas mãos de Charles Bettelheim, uma crítica demolidora das políticas de Che Guevara. Esse foi outro fator determinante de sua saída de Cuba.

Neste momento do século XXI, Che Guevara surge como caso paradigmático do terror e da morte que marcaram o século XX, refletindo o lado obscuro da força, essa energia terrível voltada para a destruição e a opressão. Guevara não tem lugar na Liga dos Homens Extraordinários. Sua história é a história de um fracasso. Seu sucesso teria se traduzido na construção de um gigantesco gulag planetário, administrado pelos santos apóstolos da revolução, com Guevara, seu profeta, à frente.

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