terça-feira, 11 de novembro de 2008

Reflexões no alto do banquinho

por Percival Puggina, no Mídia Sem Máscara

Uma sociedade que se mostra desatenta ou tolerante em relação aos abusos do poder central está passando a corda no próprio pescoço e subindo num banquinho que logo mais desaparecerá de sob seus pés. Isso está em curso no Brasil, e fica para sua escolha crer se ocorre como parte de uma estratégia ou se é algo que os fatos, por si mesmos, espontânea e descontroladamente, se encarregam de desencadear. Em qualquer das possibilidades, saiba: somente a atenção social, a percepção para a natureza do problema, a rejeição de suas conseqüências e a mobilização política podem interromper o que vem por aí.

Muito tenho escrito sobre o desequilíbrio que marca as relações entre os membros da federação brasileira na repartição dos recursos fiscais, que concentra na União mais de dois terços de tudo que o poder público arrecada no país.

Essa dinheirama, que abarrota os cofres federais em sucessivos recordes de arrecadação, transforma a presidência da República num poderoso patronato junto ao qual todos os demais entes federados e seus representantes mendigam verbas para atender, minimamente, as demandas de suas comunidades. O presidente e a ministra ungida circulam por aí distribuindo recursos, assinando convênios e recolhendo afagos. São a versão moderna, em dois gêneros, dos antigos mecenas, de cujos gostos flui dinheiro grosso. Assim, algo que sequer deveria existir (e que, existindo, precisaria ser puramente institucional) se torna subjetivo, pessoal. Não mais se trata, sequer, da velha relação amigo-inimigo – “para os amigos os favores e para os inimigos os rigores”. Não. É coisa bem diferente: sumiram os inimigos, cooptados no indispensável balcão das súplicas, longe do qual nada acontece. Por incontornável exigência dos fatos, ninguém antagoniza o governo federal porque isso prejudica a saúde financeira do Estado ou município que o fizer. E foi assim que subimos no banquinho.

A recente campanha eleitoral serviu para tornar evidente que poucos candidatos se situavam distante da mão indulgente do Planalto. Para os mais chegados, aliás, a expressão “buscar recursos federais” era a palavra mágica de onde derivavam as soluções para quaisquer dificuldades dos municípios. Era como se estes estivessem dispensados de ter recursos próprios e o orçamento da União fosse a fonte inesgotável que podia irrigar com abundância os programas locais. Quando isso pareceu muito natural a todos e quando nenhuma voz se ergueu para apontar o absurdo da situação, a corda da tirania envolveu nosso pescoço.

Onde foi parar o espírito libertário da nossa gente? Onde o senso de justiça? Estamos submetidos a uma condição servil, a uma sujeição obscena, que se caracteriza pelo aspecto monolítico do poder federal e por sua sedutora e irresistível capacidade de compra. “De todas as tiranias, aquelas exercidas para o bem de suas vítimas acabam sendo as mais opressivas”, ensina-nos o novelista irlandês Clive Staple Lewis. Há que refletir com urgência sobre isso enquanto as autonomias não afundarem totalmente sob o peso das hipotecas políticas depositadas nos cofres da União. Ali há de tudo, créditos bons e podres, derivativos e subprimes, formando perigosa e faminta bolha de poder. Saiba, leitor: pode haver democracia sem Federação. No entanto, havendo Federação, tornar ridícula a autonomia dos seus membros é acabar com a democracia. É chutar o banquinho.

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