André Azevedo Alves, no Publico
As referências ao “neo-liberalismo” funcionam, desde os anos 1980, quase sempre como uma espécie de papão indefinido que é agitado ciclicamente para assustar a opinião pública.
Não espanta por isso que, no contexto da actual crise, o discurso sobre a falência das ideias “neo-liberais” esteja a servir para ocultar os falhanços da política monetária e da regulação. Aqui, convirá recordar que foram os bancos centrais a gerar condições para a bolha de crédito (através da manutenção de taxas de juro artificialmente baixas) e não esquecer as falhas dos reguladores do sistema financeiro, que se revelaram incapazes de cumprir com independência (do poder político e económico) as funções que justificam a sua existência.
Tanto na Europa como nos EUA, o peso do Estado (absorvendo na maior parte dos casos entre um terço e metade da riqueza produzida) está muito longe do que se poderia considerar um Estado pequeno. Mesmo assim, a regulação não funcionou.
As falhas dos Estados tiveram um papel crucial na geração da actual crise internacional mas, infelizmente, serão os contribuintes actuais e futuros a pagar as consequências dessas falhas. E tanto mais quanto se insistir nas velhas receitas keynesianas de aumento da despesa pública, endividamento do Estado e expansionismo monetário.
Assim sendo, não deixa de ser surpreendente que o rebentamento da bolha gerada por anos de crédito fácil estimulado pelos Bancos Centrais (acompanhado pelo evidente falhanço das entidades de supervisão e regulação) seja repetidamente apresentado como um produto do livre funcionamento da economia de mercado. A forma como a cartilha anti-liberal de muitos comentadores e jornalistas ignora as múltiplas formas de intervenção estatal na economia pode interpretar-se como pura má-fé ou simples ignorância. Mas, seja como for, há que reconhecer o seu eficiente contributo para a criação de um ambiente propício à ascensão de discursos e medidas populistas estatizantes (incluindo os famigerados “planos de salvação” que socializam os prejuízos de grupos e sectores politicamente influentes). Felizmente, ao contrário do que desejariam os arautos da cartilha anti-liberal, o modelo de economia de mercado (mais ou menos intervencionada) que tem caracterizado os países mais desenvolvidos não deverá estar em causa. A memória do absoluto desastre de todas as experiências de “socialismo real” está ainda demasiado próxima, e deverá impedir que o discurso anti-capitalista mais radical se propague para além dos grupos extremistas.
Existe, no entanto, a ameaça bem real de assistirmos – no âmbito do actual modelo – a um aumento do intervencionismo estatal a nível nacional e do proteccionismo a nível internacional. Infelizmente, se tal se vier a verificar, serão os mais pobres e as pequenas economias mais dependentes da integração na economia internacional – como a portuguesa – quem mais sofrerá com a crise.
Uma ameaça que, no contexto português, tende a ser fomentada pela nossa histórica hostilidade ao funcionamento dos mercados, bem manifesta no corporativismo do Estado Novo e nas desastrosas políticas do período revolucionário que se seguiu ao 25 de Abril de 1974.
Compreende-se assim que, num olhar retrospectivo, só o CDS de Lucas Pires tenha estado em alguns aspectos próximo do liberalismo, ainda que a crédito do PSD de Cavaco Silva se possam contar algumas importantes reformas liberalizantes.
Mesmo assim, temos de reconhecer que nenhum dos dois partidos alguma vez chegou a adoptar uma plataforma próxima da tradição do liberalismo clássico. O PSD, talvez pelas circunstâncias históricas da sua génese, sempre se assumiu como social-democrata e o CDS-PP tradicionalmente adoptou uma matriz de democracia cristã..
Importa no entanto frisar que seria um erro querer encaixar a ameaça do populismo estatizante promovido pela cartilha anti-liberal nos estritos moldes da tradicional dicotomia esquerda/direita. Será que, no contexto da reacção à crise, se poderá classificar – por exemplo – Gordon Brown como sendo mais estatista do que Sarkozy? Ou esquecer que George W. Bush – nos anos que precederam o rebentar da actual crise – foi um dos Presidentes norte-americanos que mais aumentou o peso do Estado, por contraponto a Bill Clinton que privilegiou o equilíbrio orçamental?
Quem sabe se, daqui por algum tempo, Obama não irá começar a ser acusado pelos arautos da cartilha anti-liberal de – também ele – ser um agente do “neo-liberalismo”? Seria, apesar de tudo, um bom sinal.
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