por Radley Balko, no Ordem Livre
Esqueça, por um instante, a AIG. Esqueça Merrill Lynch, Bear Stearns, Lehman Brothers, Freddie Mac e Fannie Mae. Imagine uma empresa muito maior. Imagine uma empresa que, ao fim do ano, tenha gasto 400 bilhões a mais do que arrecadou. Pior ainda: imagine que a contabilidade da empresa é tão ruim que esses 400 bilhões nem chegam perto de cobrir todos os compromissos financeiros da organização.
De fato, essa empresa deliberadamente optou por usar o que é conhecido por “regime de caixa” em vez de regimes de contabilidade mais precisos. O “regime de caixa” é feito com base na quantidade de reservas de dinheiro que a empresa tem em mãos, ignorando seus futuros compromissos financeiros. É como dizer que, se você tem 75 dólares na sua conta bancária agora, então você está com um saldo positivo de 75 dólares – mesmo que você tenha atrasado o pagamento do carro, perdido o emprego, e o cheque do aluguel vá ser descontado no fim do mês.
A empresa também pratica algumas artimanhas como “forward funding” [autorizar que determinado recurso previsto para o próximo ano fiscal comece a ser usado antes do período previsto], “advance funding” [autorizar a utilização de recursos do ano fiscal seguinte para cobrir gastos maiores do que o esperado no ano fiscal atual] e o adiamento de suas obrigações; truques de contabilidade que escondem de auditores e de seus investidores o verdadeiro estado de suas descuidadas finanças.
Essa empresa continuamente pega emprestado dinheiro do fundo de pensão dos seus trabalhadores para pagar suas dívidas. Em seguida, seus contadores alegam que, como a empresa deve o dinheiro que pegou emprestado a seus próprios funcionários, e não a credores externos, o rombo resultante no programa de pensão não conta realmente como uma dívida. Algumas vezes, os executivos da empresa deixam até mesmo de apresentar um orçamento para seus projetos. Quando isso acontece, eles mantêm a empresa funcionando com “gastos de emergência”; o que seus contadores não consideram gastos reais para fins de registro no fluxo de caixa, mesmo que sejam gastos pagos com dinheiro de verdade.
Nesse ponto, você provavelmente já adivinhou onde estou querendo chegar. Eu não estou realmente falando sobre uma empresa privada, mas sim, sobre o governo federal dos Estados Unidos da América. Se qualquer organização privada usasse os mesmos truques de contabilidade que a presidência e o congresso e americanos usam para esconder a enorme dívida e os compromissos financeiros do governo, seus diretores e executivos já estariam todos na cadeia. Mas no governo, isso é uma prática comum. E não estamos nem mesmo considerando o financiamento das duas guerras atuais, que de algum modo está sendo feito por fora do processo orçamentário normal.
Se o governo fosse obrigado a seguir os mesmos padrões de contabilidade do setor privado, sua dívida estaria nos trilhões, e não nos bilhões. Em maio passado, o presidente do Federal Reserve de Dallas, Richard Fisher, disse que apenas a dívida do Medicare e do Social Security [a Previdência Social americana] chegam a assustadores 99,2 trilhões de dólares, ou 333.000 dólares para cada homem, mulher e criança dos Estados Unidos. A quantia é absurda.
Então, quando os líderes do congresso e os candidatos à presidência dos Estados Unidos pedem mais supervisão do governo sobre as enrascadas instituições financeiras, minha vontade é dar uma boa risada. A idéia de que o setor privado estaria melhor hoje se tivesse tido mais supervisão dos políticos é insultante. Nossos políticos não reconheceriam a “responsabilidade fiscal” mesmo que ela esbofeteasse suas caras.
Os magnatas de Wall Street talvez sejam “gananciosos”, como tanto McCain e Obama têm dito, mas ao menos eles sofrem conseqüências reais quando se tornam excessivamente gananciosos: eles vão à falência.
A não ser, claro, quando o governo limpa a barra deles. Até agora, além de estarem pendurados na própria dívida gigantesca do governo federal, os pagadores de impostos irão também arcar com 85 bilhões de dólares para AIG, a gigante dos seguros, com 100 bilhões de dólares tanto para Freddie Mac como para Fannie Mae, assim como irão financiar a rede de segurança da Bear Stearns. Espera-se também que o congresso aprove pelo menos 25 bilhões em subsídios para as três maiores empresas automobilísticas. E pode esperar que mais subsídios virão ao longo do caminho. Tudo isso tem levado alguns analistas a questionar os graus de investimento dos Estados Unidos e, o que é pior ainda, a se perguntar se o próprio governo não irá em breve tombar sob o peso de suas próprias dívidas.
Quando você, um cidadão comum, gasta frivolamente e não paga suas dívidas, o banco toma sua casa. Quando o governo gasta o dinheiro dos seus impostos frivolamente, ele simplesmente maquia os livros para esconder seus excessos. Depois de abandonar os livros, o governo simplesmente pega mais do seu dinheiro ou então imprime mais dinheiro, o que faz com o dinheiro que ele ainda não tomou de você seja desvalorizado. Durante as últimas semanas, ficamos sabendo que o cidadão americano está prestes a passar por mais um ultraje: quando o banco de seu vizinho gasta frivolamente e não paga suas dívidas, o governo aproveita para pegar o seu dinheiro para manter o banco funcionando.
Muitos comentaristas estão culpando o capitalismo por tudo isso. Mas isso não é capitalismo: é um tipo peculiar de socialismo corporativista, onde os bons riscos e os lucros resultantes permanecem privados, mas os maus riscos e os prejuízos resultantes são repassados para o pagador de impostos. Não há nada de livre mercado nisso.
Nem Obama nem McCain nem os líderes de nenhum dos partidos no congresso possuem um plano sensato para lidar com os compromissos financeiros do Social Security e Medicare. Pelo contrário: todos vêm propondo novos e caros projetos de governo que simplesmente não são sustentáveis a longo prazo. Ninguém parece se lembrar do iminente risco financeiro do governo; e todos parecem determinados a piorá-lo.
Perversamente, todos estão pedindo simultaneamente que tenham maior controle sobre o setor privado – pois, segundo sua irritante justificativa, as corporações teriam demonstrado não conseguir comportar-se de maneira fiscalmente responsável por si sós.
Os governos têm ferrado os pagadores de impostos desde que existem governos e pagadores de impostos. O capitalismo, por outro lado, é algo relativamente recente, e estimulou as maiores explosões de riquezas e elevação na qualidade de vida de toda a história humana. O que está acontecendo agora não é capitalismo, mas com certeza é o capitalismo que está levando a maior parte da culpa.
Infelizmente, o resultado final pode ser que os políticos façam o capitalismo prestar ainda mais contas a eles – às mesmas pessoas que mostraram que, quando se trata das finanças do governo, não precisam prestar contas a ninguém.
Tarefa impossível...
Há 3 semanas
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