por Sergio Biasi no Indivíduo
Algo que por vezes parece escapar a muitos comentaristas políticos que falam entusiasticamente do “colapso” do comunismo soviético é que este não se deu exatamente e nível ideológico, e sim por ter se tornado economicamente insustentável. A fragilidade econômica interna do sistema, associada à necessidade de responder a programas armamentistas estratosféricos promovidos pela administração Reagan levou o império soviético à bancarrota.
Tal falência, porém, se deu basicamente a nível material, de recursos, e não a nível de idéias. Não se deu através de nenhuma “revolução” motivada por anseios de liberdade, justiça e indendência individual, mas pelo muito menos transcendente problema de que o estado ficou sem dinheiro para manter de forma eficaz e organizada seus sistemas de repressão interna. Por um lado, parece claro que o plano de derrotar o império soviético através de conflito armado direto seria não só inviável como a tentativa resultaria em suicídio coletivo de grande parte da humanidade. Por outro, o plano que concretamente “funcionou” de derrotá-los através de sufocação econômica derrotou apenas uma certa manifestação externa de um problema muito mais profundo.
A questão (pelo menos para alguém que acredita que as pessoas devem tanto quanto possível serem deixadas em paz para administrarem suas vidas como quiserem) é que a idéia básica de que seja moralmente aceitável e/ou socialmente desejável que o governo (ou qualquer outra entidade coletiva) controle irrestritamente a vida individual das pessoas não passou nem perto de ser derrotada, e continua bastante forte. E isso não só por lá nos confins da Ásia. Em quase todo o mundo, me parecem serem pouquíssimas as pessoas que acreditam atualmente que suas próprias consciências individuais devam ter precedência moral sobre quaisquer preceitos receitados pelo governo, pelas igrejas, pela família, pelas escolas ou por quem quer que seja. Não acredito ter havido qualquer vitória realmente significativa ou duradoura sobre tais idéias despersonalizantes. Muito pelo contrário, após um revolucionário período histórico em que a humanidade parecia destinada a libertar-se dos grilhões da opressão violenta e organizada ao pensamento individual divergente, vejo no horizonte as nuvens de um retorno ao obscurantismo massificante.
Inclusive, note-se que mesmo economicamente, o sistema soviético não era intrinsecamente “inviável”, afiinal sempre é uma opção logicamente disponível escolher voluntariamente viver na miséria por burrice, ignorância ou fanatismo (ou mesmo por preguiça, falta de ambição ou - num caso mais sofisticado - escolha consciente ao invés de acidental). O problema não foi tanto uma implosão espontânea quanto uma competição direta com economias um pouco mais eficientes (ou pelo menos eficazes), associada à não-passividade de tais economias diante de um projeto muito real de serem assimiladas.
O governo da China atual percebeu isso claramente e construiu um modelo divergente do soviético no qual o desrespeito mais desprezível às liberdades individuais é amplamente tolerado tanto internamente como externamente através da implementação de politicas econômicas pragmáticas. Por esse ponto de vista, pode-se argumentar que, muito ironicamente, o colapso do império soviético se deu não por ser opressivo, mas sim por não sê-lo suficientemente. Ao apegar-se a uma bagagem idealista e fantasiosa de estar cumprindo uma missão semi-divina cujo resultado eventual seria a construção de uma utopia na terra em que todos os seres humanos teriam (mesmo que à força) dignidade, felicidade, segurança, etc…, o governo soviético perdeu a chance de usufruir de diversos caminhos pragmáticos para obter progresso econômico concreto, recusando oportunidades que acreditava não poder coerentemente aproveitar.
O governo chines, por sua vez, despindo-se de tais vernizes e melindres, alavanca suas possibilidades econômicas ao máximo enquanto destrói sistematicamente qualquer tentativa de preservar a autonomia individual de pensamento, expressão e administração da própria vida. A sustentabilidade dessa estratégia a longo prazo descobriremos ao longe do resto do século, mas a noção de que tal sistema seja economicamente viável é preocupante.
O que nos leva à seguinte questão. Sou em princípio sim a favor do “livre” mercado em sua acepção mais ampla. Mas *não* porque esse sistema seja necessariamente o mais eficaz ou o que gera mais riqueza, e sim como efeito colateral da minha convicção de que as pessoas devem ser em princípio deixadas em paz para fazerem o que bem entenderem com suas vidas. Mesmo aceitando a premissa de que o “mercado” maximize ou de alguma forma otimize a “produção de riqueza” (por exemplo investindo trilhões na China), não acho que maximizar a produção de riqueza coincida automaticamente com maximizar as coisas que eu gostaria de vez maximizadas. Prefiro ter um carro um pouco pior mas não precisar ter medo de ser preso ou punido por expressar idéias impopulares.
Mas isso sou eu, e talvez essa posição não seja nem representativa nem evolutivamente ótima. Por um lado, talvez uma grande parte das pessoas se importe muito mais com ter carro um pouco melhor do que com poder dizer livremente o que pensa. Por outro, talvez maximizar a produção de riqueza seja o que efetivamente determina a sobrevivência material de um grupo humano, então os grupos que escolhem ao invés disso alguma noção abstrata de dignidade talvez estejam fadados a serem constantemente sendo varridos para fora da história.
O fato é que objetivamente somos máquinas biológicas descartáveis replicantes, e o domínio numérico de um certo perfil genético / cultural está inexoravelmente ligado em última instância à habilidade de se reproduzir. Especialmente num contexto em que conquistas científicas e tecnológicas facilmente se espalham universalmente, dignidade ou independência de pensamento do ser humano médio talvez pouco tenham a ver com sucesso material do grupo como um todo. Uma casta intelectual pode facilmente - e talvez até mais eficientemente - produzir toda a ciência que uma horda de zumbis “suficientemente inteligentes” se põe então a colocar em ação.
Talvez seja o caso de que o modelo economicamente mais eficiente seja de fato sermos todos descartáveis, substituíveis e intercambiáveis, abandonando qualquer noção de dignidade - seja isso atingido com ou sem um planejamento central. E se gostamos disso ou não (eu pessoalmente detesto), talvez não importe no grande esquema das coisas, porque o grupo mais eficiente em se reproduzir é o que vai predominar seja qual for a sua maravilhosa justificativa filosófico-político-ideológica. Talvez nem tentar ter uma justificativa e sim friamente e objetivamente enxergar toda a questão como um xadrez Darwiniano seja o próximo passo evolutivo/histórico. Não porque isso seja o “certo” ou o “bom”, mas porque talvez seja a estratégia que com mais eficácia aumente sua própria representatividade.
Claro que aqui não estou dizendo nada de realmente novo. O receio de que este seja o caso pode ser encontrado em um grande número de autores e obras mais ou menos óbvios. Mesmo assim, tais questões parecem por vezes se perderem nos discursos de quem associa automaticamente a pura “eficiência econômica” a um mundo no qual um ser com uma consciência que reconheceríamos (ou que atualmente idealizamos) como humana desejaria viver. Ignorar que recursos não podem ser criados do nada leva a um certo tipo de desvio perverso; achar que então a solução seja maximizar a geração de recursos a todo custo leva a outro. Infelizmente a segunda idéia talvez funcione.
Tarefa impossível...
Há 3 semanas
Um comentário:
Olá, gostei muito do seu blog. Ele é muito bom.
Parabéns!
Um abraço
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