por Marcus Vinicius de Freitas, do Mídia sem Mascara
No programa Globo News Painel do último dia 4 de Abril, comandado com lucidez e eficiência por William Waack, o assunto eram as dificuldades do governo Lula. Entre os convidados estava Eduardo Gianetti, que a certa altura fez considerações importantes com relação ao ensino superior, as quais gostaria aqui de retomar. O Brasil destina 20% do seu orçamento aos programas sociais, mas o dinheiro não chega a quem de direito, pois fica retido, segundo Gianetti, entre outras barreiras, no fornecimento de ensino superior gratuito para as classes média e alta - que poderiam arcar com esses custos - e nas benesses de uma casta privilegiada de aposentados do setor público. Concordando em geral com os dois argumentos, gostaria entretanto de reavaliar o primeiro, o que levará a um reforço do segundo. Desde já digo que a melhor coisa que poderia acontecer para a sociedade e para a universidade seria esta última se afastar totalmente do estado. Mas vamos por partes.
No argumento do economista, os responsáveis pela primeira barreira seriam os pais das classes mais abastadas, que não querem abrir mão daquele privilégio. Visto dessa forma, o argumento se constrói no mesmo campo do esquerdismo estatista da corporação universitária, apenas com sinal trocado. O debate resumir-se-a a uma queda de braço sobre quem paga e quem não paga, sem discutir o projeto universidade. Assim colocado, o debate facilita o argumento demagógico e estatista, bom para um governo como o atual e para a corporação, que, em sua maioria, não quer mudanças.
Tendo estado envolvido em maior ou menor grau com os exames vestibulares da Universidade Federal de Minas Gerais desde 1986, pude observar ao longo desse tempo que a corrida às vagas da universidade estatal (não digo pública, e já explico o motivo), se deve sobretudo ao fato de que ali o ensino tem sido indiscutivelmente melhor (até agora, mas o futuro próximo parece negro). Pais privilegiados nunca regatearam para pagar o ensino fundamental e médio de seus filhos, desde que perceberam a falência do sistema público daqueles níveis educacionais. Por que eles o fariam no nível superior, quando se define a vida do jovem? Repito, o que move, em sua maioria, os 80 mil jovens que anualmente procuram o vestibular de uma universidade como a UFMG é a qualidade até então presente. Tanto assim é que cursos como Direito, Comunicação e Odontologia (entre os mais cobiçados pelas camadas privilegiadas), os quais são ofertados em Minas Gerais por algumas instituições privadas com competência igual ou maior do que a universidade estatal, apresentam taxas de procura similares na instituição do estado e nas privadas. Mas onde cursar medicina, disparado o curso mais desejado pelas classes privilegiadas? Os 30 ou 40 candidatos por vaga desse curso na instituição federal não podem ser tachados de espertos em busca de ensino gratuito (seus pais não têm problemas para financiá-los, uma vez que eles vêm das camadas mais altas e com as maiores expectativas sócio-econômicas). São apenas candidatos a bom ensino. Portanto, penso que o problema não está em quem pode comprar e não quer pagar pelo o produto, mas no Estado, que politiza a intituição, e na corporação perversa, guiada por um lobby de aposentados e aposentandos.
Poder-se-ia argumentar que, se a universidade estatal possui mais qualidade, por que não continuar com o modelo? A resposta é que, da mesma forma em que o modelo estatal se esgotou no campo das atividades produtivas, o mesmo aconteceu no campo da educação. A demanda por mais vagas e por trabalhadores mais preparados, ao lado da universalização da aspiração à universidade (a partir dos anos 80), aliadas ainda às crescentes carências sociais, que reclamam os recursos destinados à educação superior, constituem uma pressão impossível de ser atendida eficientemente pelo estado e impedem a manutenção da pesquisa e do ensino em patamares de excelência. Mesmo que déssemos o calote na dívida, argumento da esquerda universitária para a liberação de verbas, esse quadro de impossibilidade não se alteraria, dada a brutal necessidade de investimento em áreas de infraestrutura. Ensino bom é caro mesmo, e o estado não tem mais como bancar essa demanda crescente, o que levará fatalmente à perda da qualidade, construída durante décadas. Então, privatizar? Não. Ensino privado deve gerar lucros a serem retirados do negócio, processo alheio a uma boa universidade e funcional apenas para escolas restritas a formar boa mão-de-obra. O caminho seria transformar as universidades estatais em intituições públicas, autônomas para captar e manter recursos, totalmente alheias ao estado, com responsabilidade total pelo próprio financiamento. Se, num lance improvável, o governo baixasse um decreto dando às universidades um prazo de, digamos, um ou dois anos para se desligarem do estado (em síntese, um “se virem”), tenho certeza de que a maioria sobreviveria, e para melhor. Afinal, quem ainda tem o capital de respeitabilidade descrito acima, não deveria ter medo de se sustentar e ficar independente, e deveria utilizá-lo antes que ele fatalmente se evapore. Muitos me diriam, “se isso acontecesse, a solução imediata seria apenas a cobrança de mensalidades, solução fácil e injusta com a maioria”. Digo entretanto que, em nenhum lugar de que eu tenha notícia, anuidades sozinhas financiam ensino bom e pesquisa eficiente. As universidades teriam de buscar fundos de longo prazo, que viriam de doações vinculadas a renúncia fiscal (adote uma universidade!), mecenato, contratos de prestação de serviços (cujo contratador pode e deve ser também o estado), desenvolvimento de projetos em conjunto com empresas privadas e fundações independentes, além, é óbvio, das anuidades. Essas são as fontes das melhores universidades americanas, modelos de universidades públicas não-estatais, de reconhecida competência e respeito social, mesmo nas áreas mais distantes do mercado, tais como ciências básicas, estudos clássicos, humanidades, experimentos educacionais ou de meio ambiente, ou desenvolvimento de instrumentos de saúde pública.
Isso é privatizar? Não. Harvard, Yale, Princeton, Brown ou Columbia (a Ivy League americana) não são universidades privadas. Muitas, aliás, foram fundadas como estatais e ao longo de sua história se tornaram autônomas. Não são privadas porque ninguém pode vendê-las na bolsa de valores, elas não geram dividendos para acionistas, nem possuem donos que possam trocá-las por um investimento mais rentável. Elas são instituições públicas, donas do próprio nariz. Produzem, sim, muito lucro, que é todo reinvestido em seu aprimoramento. Seus administradores lutam diariamente para captar, conservar e fazer crescer os fundos. Se não captam, não sobrevivem. Vida dura, mas recompensadora. Bem melhor do que o orçamento-mesada que não pede contrapartida, mas também não chega nunca. A regra de ouro desses fundos é que não se toca no principal, mas apenas em 5% do montante anual, correspondente aos juros do investimento. Para fazer face a um orçamento anual de 1 bilhão de dólares, Harvard tem, guardados e aplicados ao longo de mais de 150 anos, 20 bilhões em fundos, intocáveis, conseguidos a partir do capital de respeitabilidade social adquirido com ensino, pesquisa e extensão de base e de ponta. E vale lembrar que, nessas intituições, não mais do que 30% em média dos alunos de graduação pagam direta e imediatamente as caríssimas anuidades (em torno de 35 mil dólares, fora moradia, alimentação e livros). Nos níveis de pós-graduação a taxa é ainda menor, praticamente restrita ao enorme contingente de estrangeiros em busca de formação rica e fundamentada. Há bolsas variadas (vindas do estado, de ONGs, de fundações e de empresas) e crédito baixo e de longo prazo na rede bancária. Parece um mundo impossível, mas que nunca será alcançado se não for buscado. E não penso que esse quadro precisaria de um século para se implantar. Repito, com o capital de respeito que ainda possuem as universidades estatais, essa transição poderia ser feita em menos de uma geração. Se não o fizermos, esse capital irá rapidamente se escoar, como já vem se escoando através da evasão de bons professores, do sucateamento das condições de trabalho e pesquisa, das bibliotecas indignas do nome.
Quais as chances de que uma mudança dessa ordem ocorra? Quase nenhuma. Por um lado, o governo demagógico já deu mostras de que quer se aproveitar dessas más condições para, barganhando migalhas, conseguir apoio para os seus projetos políticos. O ministro Tarso Genro declarou ainda na posse que a reforma deverá enquadrar a universidade nos projetos sociais do governo. Aí já estão as cotas e a pressão por eleições paritárias para reitores prenunciando o que pode vir. Não nos espantemos se aparecer para logo a Gratificação da Sopa, que troca melhores salários por engajamento nos Fomes Zeros.
Por outro lado, a corporação, com olho na manutenção das aposentadorias precoces, que permitem ao professor aposentar-se e dedicar mais vinte ou trinta anos de trabalho numa instituição privada ou numa segunda carreira na mesma instituição, ocupando a própria vaga gerada por sua aposentadoria, não querem nem ouvir falar de mudanças. Podendo se aposentar com menos anos de contribuição do que outros trabalhadores (com base numa espécie de “taxa de insalubridade”, criada para, com justiça, compensar as professoras primárias que enfrentam terríveis condições de trabalho), existem hoje milhares de professores universitários que se aposentaram aos 43 anos (mulheres) e 48 (homens), os quais dedicaram e ainda dedicam anos, às vezes décadas, a instituições privadas, ganhando bons salários como aulistas, ou a uma segunda carreira na mesma vaga, sem falar que são exatamente esses que recebem boa parte (até 40% em certas áreas) das bolsas de pesquisa das instituições de fomento, que deveriam ser destinadas aos professores da ativa, o que eleva o seu ganho a uma margem entre 150 e 200% acima do ganho dos não-aposentados. O lobby estatista dentro das universidades, largamente apoiado por aposentados e aposentandos, ancorado nos movimentos sindicais e com apoio dos partidos de esquerda, trabalha com unhas e dentes para convencer os jovens professores de que esse é o caminho, desprezando o fato de que esse processo só levará a um sucateamento cada vez maior, motivo da reclamação de todos. Por motivos diferentes, a militância estatista das universidades e o governo acabam por ser parceiros nesse projeto de inércia, sem falar que nas universidades estão historicamente as fileiras mais aguerridas em defesa do atual partido no governo. De um lado, uns querendo submeter as instituições de ensino aos seus projetos políticos. De outro o apoio, desde que tudo fique como está. Acho que estamos fadados ao fracasso.
O autor é Ph.D. pela Universidade Brown (EUA), e professor de Literatura Portuguesa e Brasileira da Universidade Federal de Minas Gerais.
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