por Rui Albuquerque, no O Insurgente
A existência de um acervo normativo metajurídico, isto é, que se sobrepõe ao direito positivo, no qual se encontram plasmados os direitos fundamentais dos indivíduos, representa a mais importante limitação ao poder soberano do Estado e a mais eficaz salvaguarda da liberdade. A ideia de que a natureza humana conhece princípios, regras e valores que lhe são inerentes e constantes no tempo e no espaço, e serão merecedores, por isso, da tutela jurídica do direito positivo (que em circunstância alguma os pode pôr em causa), é antiga. Designa-se por «lei» ou «direito natural». Cícero escreveu, n’ A República, que «há uma verdadeira lei, recta razão, conforme à natureza, difundida por todos, constante, eterna (…) não é uma em Roma e outra em Atenas, não é uma hoje e outra amanhã, mas lei única e eterna e imutável, será para todas as nações e para todos os tempos». Esta é uma boa definição de direito natural.
Se Cícero, ao contrário do jusnaturalismo cosmológico e panteísta grego, fundava já em Deus a origem da «lei natural», o jusnaturalismo medieval acentuou essa fundamentação teológica. S. Tomás de Aquino, símbolo máximo do jusnaturalismo católico, considerava a «lei natural» como a participação da «lei eterna» -a razão divina no plano da criação, na razão humana. Graças a ela, o homem propende naturalmente para o bem, para a paz e a verdade. Distinguindo na «lei natural» os «primeiros princípios» e os «segundos princípios», S. Tomás considera que apenas os primeiros, mais proeminentes e fundamentais, são universais e imutáveis, enquanto que os segundos podem ser modificados e de aplicação particular, correspondendo, de algum modo, às variações históricas da moral social. Para todos os efeitos, a «lei humana» derivará da «lei natural», não a desrespeitar, cumpri-la, de modo a almejar a justiça, ela mesmo um reflexo da vontade de Deus.
A laicização do direito natural foi operada pelo racionalismo setecentista e oitocentista, que lhe atribuiu existência própria para além dos planos divinos. Grócio, Pufendorf e Tomásio, apesar de serem cristãos protestantes, não vêem necessidade de recorrer a Deus para fundarem a existência da «lei natural». É célebre a afirmação do último desses três filósofos e juristas, segundo a qual a razão será suficiente para descobrir os preceitos do direito natural, para o que «não contradirei os textos sagrados, apenas prescindirei deles».
Para todos os efeitos, o direito natural foi sempre um forte entrave ao despotismo e ao totalitarismo do poder político. Ele fundamentou, no mundo antigo, a ideia de justiça, e no mundo moderno e contemporâneo a criação de limites ao governo e ao exercício dos seus poderes. Fê-lo por via da proclamação de direitos fundamentais inerentes aos cidadãos de uma comunidade política, consagrados nos textos constitucionais, eles próprios também decorrentes da preocupação de limitar e conter a soberania. São os chamados «direitos fundamentais de primeira geração», que representam, no essencial, o elenco de direitos naturais consagrados pelo liberalismo clássico, a saber: a vida, a propriedade, a tolerância e a liberdade religiosa, a liberdade de expressão, a segurança, a igualdade perante a lei, a imparcialidade da justiça e a igualdade de armas entre as partes. No fim de contas, o que Jefferson consagrou na Declaração de Independência dos EUA, ao escrever que «todos os homens foram criados iguais, foram dotados pelo Criador de certos direitos inalienáveis, que entre estes estão a vida, a liberdade e a busca da felicidade».
O direito natural é, assim, património histórico e filosófico do liberalismo. Já no nosso tempo Murray Rothbard retomaria o tema e entroncaria nele toda a sua teoria da liberdade. Tratava-se (a «lei natural») de uma verdadeira «ciência da felicidade» (uma evidente reminiscência da Declaração de Independência), que servia para aclarar «o que é melhor para o homem – que fins deve prosseguir por serem os mais conformes com a sua natureza e os que melhor tendem a realizá-la». A razão seria o instrumento indicado para alcançar a verdadeira natureza humana («Se o homem tem uma natureza, porque não há-de ser acessível à observação e reflexão racional?») e, através dela, criar uma ética objectiva para o indivíduo e a sociedade humana, baseada em «princípios de justiça absolutos». Do ponto de vista liberal, para além de se fragmentar em direitos individuais absolutos, a «lei natural» resulta, em si mesma, num «conjunto de normas que podem sustentar uma crítica radical à lei positiva em vigor imposta pelo Estado». É o primeiro limite à acção do Estado.
É por isso que os defensores do estatismo são quase sempre adversários da ideia do direito natural. Entre eles, obviamente, Hans Kelsen, o célebre jurista austríaco do século XX, para quem o direito se consubstancia nas normas jurídicas positivas decorrentes da vontade do Estado, e encontra a sua validade em si mesmo, na autoridade do legislador, e não em quaisquer considerações éticas ou morais, menos ainda numa suposta ideia de justiça universal, que Kelsen considera ser uma pura ficção. Não obstante o seu positivismo formalista, nem mesmo Kelsen conseguiu escapar à necessidade de encontrar uma razão primeira para o Direito, a célebre Grundnorm, a «norma fundamental hipotética», que ele situava numa espécie de ius gentium de recorte pouco conciso. Poderia encontrá-lo, a esse conteúdo, por exemplo, em Grócio, para quem o direito das gentes mais não era do que a expressão última do direito natural.
Controle de nada…
Há um dia
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