quinta-feira, 24 de abril de 2008

Um paradigma totalitário

por Roberto Romano
Revista Cult

Ao contemplar a Virgem nas artes, medievais ou quando surgia a Renascença, notamos a desproporção entre o seu tamanho e o dos pecadores. Corpos trêmulos abrigam-se sob a mulher que esmaga o mal. O pagamento do pecado é a morte (Rom 6,23), mas a salvação se oferece, gratuita. Cada um dos fiéis encontra em Maria a sua portapara deixar o vale de lágrimas. Os cristãos estão no mundo, mas caminham para o invisível. A coroa de Maria garante o triunfo sobre o Inferno. No culto à Virgem o tempo dos cristãos vai do agora ao instante da morte. Desprotegidos em termos seculares, os cristãos submetem-se aos barões ou peregrinam pelos centros onde Maria os reconforta. Os conflitos entre Estado nacional e Igreja centralizada surgem ao redor do mando soberano. Segundo G. Duby, “a coroação de Maria na catedral celebra (…) solenemente, a soberania da Igreja romana”. Com o tema da Virgem rainha e mãe, o papa Inocêncio III a reivindicava para a soberania plena da Igreja.

Tendo na lembrança os enunciados acima, examinemos a Virgem enquanto figura do poder. Na pintura e nas doutrinas religiosas não existem pessoas isoladas, todas se colocam sob o manto de Maria/Igreja, o que lhes dá segurança e certeza da salvação. Na Virgem da Misericórdia, leigos e clérigos são protegidos igualmente pelo manto soberano da Mãe de Deus. As batalhas entre a Santa Sé e os reis conduzem a pintura para a propaganda política. Recordemos a guerra entre o papa e os reis. No texto Sicut universitatis conditor (1198), Inocêncio III proclama que “O Criador do universo estabeleceu duas grandes luzes no firmamento dos céus; a maior para iluminar o dia, a menor para dirigir a noite. Ele fez o mesmo para o firmamento da Igreja universal, da qual falamos como se fosse um céu, e definiu duas grandes dignidades; a maior para proteger e governar as almas (os dias), a menor para proteger e governar os corpos (as noites). Tais dignidades são a autoridade pontifical e o poder real. A lua retira sua luz do sol, sendo inferior a ele em tamanho e qualidade, em posição bem como em eficácia. O poder real deriva sua dignidade da autoridade pontifícia: e quanto mais ele escapa da esfera daquela autoridade, menos luz o adorna; quanto mais dela se aproxima, mais aumenta seu esplendor”.

Nas escaramuças entre os poderes surge o Policraticus. O poder real, afirma Jean Salisbury, se quiser escapar ao label da tirania, deve ouvir e obedecer a Igreja. E vem a profecia: o Estado exigirá para si a força física ilimitada. O corpo social, no Policraticus, é relevante porque a dualidade entre os poderes — espiritual e secular — começa a se definir. Se a tarefa do príncipe é manter a boa saúde do corpo estatal, o sacerdote tem a missão de aconselhar neste labor, como se fosse a alma da República. Caso o rei abuse do poder e desobedeça aos mandamentos religiosos, mergulhando a comunidade na injustiça, a sua morte é correta e abençoada. No imaginário religioso foram geradas imagens contraditórias do soberano laico, da monstruosa à respeitável. Mas elas não se recobrem, deixam espaços para os cidadãos decidirem sobre a obediência hegemônica, a religiosa ou a secular. Igreja ou Estado não integra os indivíduos numa unidade sem fissuras. As imagens da Virgem, signos da soberania eclesiástica, mostram o quanto o poder legítimo protege os súditos até a hora da morte. Com a secularização do Estado e da cultura, o indivíduo só tem segurança quando preso ao corpo estatal.

Com Hobbes o cidadão perde o direito de seguir a consciência religiosa contra o poder. A causa deste veto encontra-se na ficção do pacto, no qual todos os indivíduos contratam a sujeição comum ao soberano, sendo autores do Leviatã. Ir contra este último significa destroçar a si mesmo, o que seria ilógico na óptica assumida pelo filósofo. “Constituído o Estado, a personalidade inteira do povo passa sem reserva à do soberano, seja esta a personalidade física de um indivíduo, seja ela a personalidade artificial de uma Assembléia. Só na última e por ela o povo é pessoa, enquanto é apenas uma simples multidão sem ela e, portanto, não pode ser pensado como sujeito de qualquer direito diante do soberano”. A principal renúncia, no pacto, determina que os indivíduos não têm direito de professar a sua religião como lhes interessa.

Hobbes investe contra o universo cristão, cuja doutrina afirma que a natureza participa da sobrenatureza divina, o fundamentava na dualidade dos poderes, o secular e o religioso. O pacto ocorre no mundo e reúne a todos e a cada um. Se todos se sujeitam a todos, os que quiserem retornar à vida anterior ao pacto serão esmagados, mesmo que sejam muito fortes. E temos a imagem célebre do Leviatã para definir o nexo entre as pessoas e o coletivo.



No Leviatã, os seres humanos integram o corpo do gigante sem nenhum intervalo, dando-se a unidade absoluta das partes no corpo do Estado. No caso da Virgem, percebe-se não apenas a diferença do tamanho (Maria imensa, os súditos pequenos) mas os corpos não se fundem. Tal distância corresponde à transcendência do poder religioso. Maria intercede pelos homens, mas seu corpo não é formado por eles. O soberano hobbesiano não depende de nenhuma transcendência porque expressa de imediato a vontade dos que o constituem e conhece diretamente a vontade coletiva. Não existe intervalo entre o coletivo e cada um dos que assumiram o pacto de submissão. E se por acaso surgir alguma fissura entre ambos, o indivíduo que a produz é réu de traição a si mesmo, porque deseja o pacto. O poder é imanente em termos absolutos, o que simplifica ou mesmo suspende a questão da legitimidade. O Leviatã protege os indivíduos deles mesmos. Ou cada um aceita integrar-se nele, ou assume a guerra primitiva que põe a sua própria existência em risco perene. Cada um, a partir do pacto de submissão, sente e pensa como um “nós” que domina as veleidades de autonomia e independência individual.

Horst Bredekamp, estudioso do fascínio pela máquina que assalta a alma ocidental, escreveu bela análise sobre o Leviatã, protótipo do poder mecânico onde se integram os indivíduos num coletivo finito, contrário à transcendência religiosa. Em Estratégias Visuais de Thomas Hobbes, ele expõe a gênese das imagens utilizadas pelo filósofo e as suas fontes nas teorias ópticas, na retórica e nas tradições místicas. Seu mote encontra-se nas palavras de Hobbes: os homens podem prever a sua própria preservação e uma vida com maior contentamento. Eles só podem fugir da guerra que surge das paixões “quando não existe um poder visível para lhe impor respeito” (Leviatã, segunda parte, Of Commonwealth).

Hobbes, argumenta Bredekamp, inicia a moderna teoria do Estado a partir da óptica, matéria que estudou durante anos e inseriu em sua obra principal com figuras tão cuidadosamente escolhidas que resultam de estratégias visuais. O autor também observa o De corpore (1655), onde Hobbes desenvolve sua teoria das marcas e sinais. As marcas ajudam a memória, os sinais definem-se por sua publicidade. Eles comunicam assuntos e podem dar início a ações. Bredekamp dá como exemplo de um sinal público o colapso das Torres Gêmeas em 11 de setembro. O sinal do Estado encontra-se na unidade. O contrato que o forma é mais do que um acordo, pois trata-se da união real de pessoas (in personam unam vere omnium unio). Nele, as vontades são reduzidas a uma só.

Com base nessa imanência absoluta do Estado, fortificaram-se na modernidade teorias e práticas cujo paroxismo ocorreu nos Estados fascistas e estalinistas do século 20. Sei muito bem que Hobbes não tem culpa pela radicalização de seu protótipo político. Ele não precisaria mesmo ser chamado ao Tribunal de Nuremberg a exemplo de seu admirador, Carl Schmitt. Mas ao ver, hoje, militantes raivosos atacarem a honra e a dignidade dos que se opõem ao “seu” partido, ao “seu” governo, ao “seu” guia infalível, recordo o refrão que unificou multidões brasileiras em data recente. E assim o traduzo: “Com o Leviatã ou sem o Leviatã, todos nós somos o Leviatã.” Forma bem tosca de verter uma tese violenta: “O Estado é Lula.” Daí as críticas a ele endereçadas serem assumidas como crime de lesa-majestade. Daí o palavrório sobre conspirações de elites, as quais, no entanto, festejam noite e dia a nossa cópia de rei absoluto. Uma advertência se impõe, no entanto: entre os corruptos da agremiação política e os membros “éticos”, o nexo é de corporeidade comum. Uma estrutura somática assim, monstruosa, permite os piores abusos, porque o membro pérfido e tirânico é automaticamente defendido pelos demais. “Comunhão negra dos santos”, disse Merleau-Ponty sobre o maquiavelismo estalinista. Corretas palavras.

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