Diante de uma abordagem tão viciada, é compreensível a irritação do conhecido intelectual italiano Norberto Bobbio. Sem estar vinculado a qualquer credo, recebeu duras críticas por defender o direito incondicional à vida desde a concepção: “Pergunto-me o que há de surpreendente no fato de que um não-crente considere válido, em sentido absoluto, como um imperativo categórico, o ‘não matarás’. Para mim, é assombroso que os não-crentes deixem para os crentes o privilégio e a honra de afirmar que não se deve matar”.
Como sublinhou o filósofo espanhol Julián Marías, o ponto central é a “distinção decisiva entre coisa e pessoa”. Um exemplo da literatura pode ajudar a compreender a diferença. O escritor francês Antoine de Saint-Exupéry, diante das atrocidades da guerra civil espanhola, escreveu as seguintes linhas: “A grandeza do homem não é feita apenas do destino da espécie: cada pessoa é um império. Quando a mina se desmoronou e se fechou sobre um único mineiro, a vida (ao redor da mina) parou... Talvez venham a morrer dez camaradas nos trabalhos de socorro... É que não se trata de salvar um cupim entre os cupins de um cupinzeiro, mas sim um império, cuja importância não é fácil medir.” Tal aritmética só é compreensível para quem compreende bem a “distinção decisiva entre coisa e pessoa”.
As tradições do Oriente e do Ocidente confluíram no tempo para aprofundar este conceito, que não é religioso (relembre-se o óbvio) e que está na base das nossas concepções de democracia. Uma coisa vale pela sua utilidade ou conveniência. Uma pessoa vale por si mesma: não depende do amor alheio ou do reconhecimento do Estado, embora, justamente por ser uma pessoa, mereça ser amada pelos demais e respeitada pelo Estado.
Que tem isso a ver com o aborto? Como discutimos no editorial de ontem, “o embrião é já um novo homem desde a fecundação”. Deve, portanto, gozar dos mesmos direitos que seus semelhantes, pois “a dignidade é intrínseca a toda e qualquer vida humana”.
Há quem aceite a condição humana do feto, mas negue a sua dignidade intrínseca, subordinando-a a diferentes valores. Tal atitude costuma ser associada a um progressismo que, analisado mais de perto, pode ser considerado um exemplo paradigmático de pensamento reacionário, pois nos levaria de volta à pré-história.
De qualquer forma, convém analisar os argumentos de quem acredita que a vida humana não pode ser relativizada.
Com freqüência afirma-se a licitude do aborto quando se julga que aquele que vai nascer será excepcional, física ou psiquicamente. Permitir o desenvolvimento normal do feto seria uma crueldade com a família, com a própria criança e – por que esconder? – com os cofres públicos.
A melhor resposta é um convite para freqüentar as inúmeras instituições que cuidam de cegos, surdos, paralíticos ou deficientes mentais. Paradoxalmente, conviver com uma criança excepcional é uma ótima cura para a perspectiva egoísta que está na raiz desta posição e que relega ao esquecimento a idéia-chave de nossa civilização, de que cada ser humano é um “império”.
De qualquer forma, é sempre bom dar nome aos bois. A proposta de eliminar “anormais” chama-se eugenia prática. Já foi aplicada em larga escala no século XX. Muito em voga na Alemanha hitlerista.
Resta ainda o argumento de quem defende o aborto como “proteção psicológica” para a mãe. “Se a mãe não deseja o filho, deve abortá-lo.” Isto evitaria mulheres infelizes e crianças rejeitadas. Mais uma vez, é preciso esquecer que aquela criatura não é algo, mas, como dizia Julián Marías, “é alguém. Não um que, mas um quem, alguém a quem se diz tu, que dirá, no momento certo, dentro de algum tempo, eu... um eu que se enfrenta com todo o universo, contrapõe-se polarmente a tudo que não é ele, a tudo o mais.” Qualquer agressão a esta individualidade merece ser chamada "interrupção da gravidez” tanto quanto uma condenação à forca merece ser chamada “interrupção da respiração”. Aqui não valem os eufemismos. É um assassinato puro e simples (e é lamentável que haja quem confunda os legítimos direitos reprodutivos da mulher com um pretenso direito ao aborto).
Toda época carrega a mancha de um crime contra a humanidade. Hoje, envergonhamo-nos da escravidão e da tortura judicial. Mas se o aborto for legalizado no Brasil, não fugiremos à regra. Daremos às futuras gerações um bom motivo para lamentar nosso tempo.
Publicado na Gazeta do Povo - 17/04/2007
Controle de nada…
Há 2 dias
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