por Pedro Sette Câmara, n'O Indivíduo
Pululam na imprensa textos sobre 1968. Até agora, a melhor coisa que li foi o caderno especial que O Globo. Na primeira metade, cientistas políticos franceses dizem que 1968 foi ótimo e reclamam do fim das utopias e da juventude atual, que seria amarga e atomizada. Na segunda metade, resistentes da antiga Tchecoeslováquia reclamam da ocupação soviética e dizem que 1968 deixou um problema: o que fazer com aqueles que foram cúmplices do invasor estrangeiro naquele ano? Querendo ou não, o caderno mostra que era muito mais confortável ser de esquerda na Europa ocidental... O que, aliás, está longe de ser novidade.
Para mim, é muito difícil não olhar para toda a euforia ocidental em torno da idéia de 1968 sem ver uma fila interminável de narcisistas querendo colocar a sua geração no centro da História. Não me impressionam as reclamações contra a juventude atual, supostamente apática: já na Ilíada o velho Nestor ficava dizendo que os guerreiros de antigamente eram melhores do que os de hoje, e Aristóteles, na Retórica, assinalou que essa premissa é própria da mentalidade dos velhos. Ou, como disse no século XV o poeta espanhol Jorge Manrique, "a nuestro parescer / cualquiera tiempo pasado / fué mejor". Mas esta geração parece ir um pouco além e clamar para si méritos praticamente inéditos - tudo por conta de meia dúzia de passeatas.
Contudo, naquele mesmo caderno especial de O Globo , uma cientista social aponta o que parece ser o legado mais verdadeiro e tangível de 1968: a politização de diversas questões. Naquela época popularizou-se a idéia de que "todo ato é político" e de que o tempo inteiro as suas atitudes confirmam ou questionam o establishment. Eu mesmo já ouvi da boca de um jornalista: "Quando você acorda de manhã, isso já é um ato político..." É só comparar a idéia da politização total de tudo com o senso comum de 25 anos depois para reparar que aquela idéia teve inúmeras aplicações, transformada na "tecnologia da informação" conhecida como "politicamente correto". Quem tiver uma certa idade conseguirá lembrar de quando, lá no início dos anos 90, ouviu pela primeira vez termos como "afro-americano" e "deficiente visual". É impossível não ficar ressabiado com as implicações contidas nessa reformulação da linguagem, porque, ao absolutizar certos termos, ignorando os contextos, ela mesma é ofensiva. Ser negro não é uma deficiência, como ser cego. E se eu falo que gosto de "Stevie Wonder, aquele músico negro e cego" não estou sendo ofensivo, nem me parece que o próprio Stevie Wonder, cuja carreira começou décadas antes do "politicamente correto", tenha ficado ofendido com estes termos. O que não os impede, é claro, de ser usados ofensivamente em alguns casos. Por isso, o maior legado do "politicamente correto" e, com isso, de 1968, foi a necessidade de manter diante de si uma platéia imaginária maliciosa e hipersensível, permanentemente disposta a atribuir más intenções e mesmo a prender e multar quem falar certas coisas - eis o espírito libertário de 1968.
Em seu favor, os 68tistas (também tenho direito aos meus neologismos) de ontem e politicamente corretos de hoje dirão que a linguagem já era politizada e que eles, assim como os personagens de Jornada nas Estrelas em situações de perigo, apenas inverteram a polaridade nos motores. Também acusam-nos, ao recusar essa dimensão totalizante da política, de servir a um sistema sem perceber. Ora, ninguém quer ser percebido como ingênuo ou trouxa, servindo a algum interesse que ignora, e é graças a este apelo à vaidade ferida que o 68tismo politicamente correto prospera. Você faz parte daqueles que são "conscientizados" ou "alienados"?
Um tratamento liberal dessa questão não pode simplesmente respondê-la. Não se trata de politizar a sociedade, a linguagem, as ciências, a intimidade e tudo mais no sentido "bom" ou "verdadeiro". Apesar de o liberalismo ser uma posição política, ele é a posição que pretende libertar todas as demais áreas da vida humana da tirania da política ou da politização, e esse é seu único ponto de contato com "todas as demais áreas da vida humana". Se a liberdade está em tudo, a consciência dessa liberdade também pode estar. Se a liberdade é a ausência de coerção por agentes externos, então a consciência da possibilidade de escolher o próprio caminho é a afirmação do liberalismo. Uma afirmação que pode ser discreta, mas da qual depende tudo.
O que digo pode parecer sutil, mas é fácil de demonstrar. Não existe, por exemplo, uma "teoria liberal da literatura", mas existe uma teoria marxista da literatura (para quem quer saber mais, o maior ícone das análises marxistas hoje é o inglês Terry Eagleton) e milhões de análises políticas de textos literários, transformando-os em metáforas para conflitos de classe ou em simples ataques retóricos a certas idéias. Essas análises podem até ser parcialmente verdadeiras - veja, por exemplo, que é impossível ler Jane Austen sem ficar chocado com a intensidade da "consciência de classe" dos personagens, ainda que ela sempre tente mostrar que é possível transcender essa consciência. Porém, seria possível uma "teoria liberal da literatura"? Talvez uma teoria que tentasse mostrar que os personagens dos romances na verdade buscam afirmar suas próprias decisões contra uma sociedade imóvel? Isso seria tão ridículo e limitado quanto ler romances buscando apenas a confirmação ou o questionamento das estruturas políticas vigentes.
Porém, toda vez que um crítico literário escolhe os métodos que utilizará, está praticando a liberdade intelectual. Essa liberdade de análise, que inclui a liberdade de fazer testes, é que permite os avanços do conhecimento (sejam eles avanços em qualquer direção). Até mesmo quando um crítico escolhe ler romances com um modelo marxista, ou politicamente correto, ele está praticando a liberdade. Por isso pode não existir uma teoria liberal da literatura - mas existe uma atitude liberal em relação ao estudo da literatura.
A diferença entre essa atitude liberal, universalmente praticada, e a atitude (pois a teoria politicamente correta / marxista também gera uma atitude) 68tista é que a primeira não se autodestrói. A segunda é apenas nominalmente libertária: diz que vai libertá-lo dos grilhões do sistema mas já sabe aonde pretende levá-lo. O mesmo acontece com a linguagem politicamente correta: se você queria libertar-se da suposta politização da linguagem, apenas vai passar a trabalhar para novos senhores. Assim como não existe, segundo o 68tismo, uma área livre na consciência em que a boa-vontade pode prevalecer, também não existe, na convivência, uma área em que as regras possam ser livremente ditadas pela conveniência das partes.
Por isso, mesmo que o liberalismo não se pretenda uma teoria total da realidade, admitindo que há áreas da vida humana que simplesmente não são governadas por leis políticas, ele pode estar por trás de cada uma dessas áreas, afirmando a liberdade da consciência de examiná-las da maneira que quiser, de olhá-las como se fosse a primeira vez. A negação da politização total de tudo se dá pela consciência da liberdade de não agir politicamente. Falta agora, para apagar o legado de 1968, tirar a impressão de que essa politização total é uma espécie de liberdade, quando não passa de um autoritarismo das consciências.
Controle de nada…
Há um dia
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