"As sociedades tribais caracterizam-se por uma atitude mágica ou irracional dos costumes da vida social e pela sua rigidez. Não distinguem as regularidades convencionais da vida social das regularidades da “natureza”; crêem que ambas são impostas por uma vontade sobrenatural. Baseadas na tradição tribal coletiva, não admitem problemas de natureza moral, e suas instituições não dão espaço à responsabilidade pessoal. À sociedade mágica, tribal ou coletivista – comparável a um organismo – denomino sociedade fechada; e sociedade democrática à sociedade em que os indivíduos são confrontados com decisões pessoais.
A transição de uma sociedade fechada para a aberta constitui uma das mais profundas revoluções por que passou a humanidade. Essa revolução não foi feita conscientemente, nem isenta de perigos. Gerou tentativas de manter o tribalismo pela força; mas também levou à grande revolução espiritual, à invenção da discussão crítica e ao pensamento liberto de obsessões mágicas.
A Grande Geração que viveu em Atenas na época da Guerra do Peloponeso formulou os princípios da igualdade perante a lei e do individualismo político. Enfatizou também que o idioma, os costumes e a lei não têm o caráter mágico de tabus – são instituições humanas, convencionais. E insistiu que somos responsáveis por essas instituições, que devemos ter fé na razão humana, ao mesmo tempo resguardando-nos do dogmatismo: em outras palavras, que é crítico o espírito da ciência. O surgimento da própria filosofia foi uma resposta à queda da sociedade fechada e de suas crenças mágicas. Uma tentativa de substituir a perdida fé mágica por uma fé racional; modificou a tradição de transmitir uma teoria ou um mito, fundando uma tradição nova: a de desafiar teorias e mitos e de discuti-los criticamente.
Em contraste, o sonho de Platão – da unidade, da beleza e perfeição, o esteticismo, o holismo e o coletivismo – é tanto produto quanto sintoma da perda do espírito de grupo do tribalismo. É a expressão dos sentimentos dos que sofrem da tensão da civilização – nos tornamos dolorosamente conscientes das grandes imperfeições de nossa vida, das imperfeições pessoais e institucionais, do sofrimento evitável. Essa consciência aumenta a tensão da responsabilidade pessoal, de carregar a cruz de ser humano.
A lição que devemos aprender de Platão é exatamente a oposta à que ele tenta nos ensinar. A despeito da excelência do diagnóstico sociológico, sua terapêutica é pior que o mal que tentava combater. Deter a mudança política não é o remédio; não pode trazer a felicidade. Uma vez que comecemos a confiar em nossa razão e sintamos o apelo das responsabilidades pessoais e, com estas, a responsabilidade de promover o conhecimento, não podemos retornar ao estado de submissão na magia tribal. Não há volta possível a um estado harmonioso da natureza. Se voltarmos, deveremos refazer o caminho integral – devemos retornar às feras."
A Sociedade Aberta e seus Inimigos; Karl Popper.
Controle de nada…
Há um dia
Um comentário:
Daniel, a qualidade dos textos do blog é sensacional. Mesmo quem discorda ou não tem opinião sobre os assuntos em questão sairá daqui pensando. Parabéns. Voltarei mais vezes. Abs, Janaína
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