sexta-feira, 27 de junho de 2008

Indivíduos, não manada

por Reinaldo Azevedo

Vocês sabem, não? 99,4% do nosso material genético é igualzinho ao dos chimpanzés. Assim, há, é inegável, um macaco em nós. É um tanto assustador que tenhamos feito todo o resto só com 0,6%... É nessa parte ínfima que está o ser que pondera. A esmagadora maioria do que vai no nosso íntimo ainda sobe em árvore e faz cocô na cabeça alheia, pratica canibalismo, infanticídio, assalto em bando... Isto mesmo: bando é coisa de chimpanzé. Eu tenho horror a bando. Só os indivíduos na sua singularidade me interessam.

É por isso, por exemplo, que acho que o estado deve ser contido e vigiado pelo indivíduo, e não o contrário, como ocorre costumeiramente. Sim, o meu ideal político — e dizem que isso é ser de direita — é ter um estado cada vez menor e um espaço cada vez maior para a arbitragem individual. Dou um exemplo: faz sentido proibir cigarro em restaurante? Faz. Num restaurante de não-fumantes, sim. Mas por que não pode haver um outro para fumantes? Sei, cigarro predispõe ao câncer. No limite extremo, as pessoas têm o direito de optar por isso, por mais estranho que a muitos possa parecer. Ter de vir o estado para determinar: “É proibido fumar em local fechado”, sem abrir a brecha para seres privados fumarem em locais privados, previamente combinados, é uma estupidez da tentação legiferante.

“Ah, mas você é contra a descriminação das drogas no Brasil”. Sim, sou. Mas não posso ser contrário a que a pessoa decida cheirar cocaína até virar uma uva passa, ainda que eu ache que ela não deva fazê-lo. O que eu tenho com isso? No que respeita à organização social, no entanto, a minha restrição é de outra natureza: o Brasil não pode fazer tal opção sozinho. E, como não pode, a comercialização de determinadas substâncias constitui crime e é a base que financia o chamado “crime organizado”. Assim, é inescapável considerar que optar por consumir cocaína ou maconha faz do consumidor um elo da cadeia criminosa. E, segundo cá o meu tribunal, o certo seria que respondesse por isso.

Mas não quero que essa questão da droga — falo dela porque é recorrente — contamine o espírito do texto: ser contra a manada. As imposições politicamente corretas mundo afora (com maior determinação no Brasil) fazem justamente isto: tiram do indivíduo o direito à arbitragem e tentam, o que é grave, perigoso, cassar o direito à opinião. Peguemos o tal projeto que criminaliza a chamada “homofobia”: ora, as leis já punem a discriminação de homossexuais. Ir além disso, tentando policiar a linguagem, é avançar no arbítrio individual. “Ah, e se o sujeito pregar a organização de hordas para intimidar homossexuais?”. Bem, aí é crime — ou melhor: isso já é crime.

O mesmo vale para publicações desta ou daquela natureza. Alguns militantes islâmicos que hoje acusam a existência de “islamofobia” no mundo acham perfeitamente aceitável que sua religião persiga um escritor acusado de... ofender o Islã! E o que é, afinal, que ofende o Islã? Bem, só sendo islâmico para sabê-lo. Aí não dá. Devemos nos subordinar a eles? Eu acho que não. Como acho uma bobagem que se proíba a publicação de Mein Kampf, dos Protocolos ou de livros que neguem o Holocausto. Negar pode: não pode é se organizar em hordas — ou pregar tal organização — para perseguir judeus. Peguem o caso do delinqüente Mahmoud Ahmadnejad, presidente do Irã: ele afirma que o fato de alguns países ocidentais proibirem a publicação de livros revisionistas é exemplo de que a revisão faz sentido...

O espírito da democracia está contido na máxima de Tocqueville de que os males da liberdade se corrigem com mais liberdade — desde que, é claro, você não permita que grupos organizados solapem as bases do sistema que supõe a convivência entre as diferenças. Não posso corrigir o mal do terrorismo com mais liberdade ao terror, por exemplo: afinal, ele não pretende dialogar com o “outro”, mas eliminá-lo. Então, do ponto de vista da democracia, trata-se de um mal essencial.

Tenho horror a isso que chamo espírito de manada — ainda que uma manada pequena, minoritária. Faço uma brincadeira com Fernando Pessoa, assim: “Como sou Rei(naldo) absoluto da minha simpatia, basta que ela exista para que tenha razão de ser”. Não é uma apologia da incoerência, mas do individualismo.

Sou, por exemplo, católico e compreendo que os católicos considerem pecanimosa a prática homossexual. Na sua Igreja, têm todo o direito de criar obstáculos à admissão de homossexuais na hierarquia — embora a tarefa, convenham, ande um tanto difícil, não é mesmo? Mas eles existem na sociedade — constituem, desde sempre, uma parcela da humanidade —, e são seres de direito. Têm de estar abrigados pelas leis como qualquer um de nós. Sou contra o tal projeto que pune a homofobia porque o considero autoritário e contraproducente, já disse as razões, não porque, como asseguram alguns apocalípticos, os gays estão tomando conta do mundo. Isso é de uma tolice sem tamanho. Daqui a pouco vai ter gente dizendo que os sodomitas são culpados pelos terremotos. Qual é...

Aí um católico bravo comigo — ele até decidiu me excomungar; será que já virou papa? — afirma estar muito decepcionado; segundo ele, Deus ama o homossexual desde que este não pratique o ato nefando. Não vou entrar no mérito religioso da consideração, que daria pano pra manga, e prefiro me ater à questão, digamos, puramente civil: acho absurda a proposição que condene alguém à solidão Ela me parece muito pouco amorosa. E isso nada tem a ver com a pletora de tolices que se dizem por aí sobre as virtudes do “fim da família tradicional” e outras bobagens para alimentar publicações ligeiras, de entretenimento.

O que eu não quero é o estado vigiando e determinando o que posso dizer ou não, o que posso pensar ou não, o que posso fazer ou não. Precisamos, sim, de uma Constituição que garanta a todos a igualdade perante as leis e que assegure, vejam só, o direito às desigualdades — porque somos desiguais. Se e quando grupos organizados ameaçarem o direito à igualdade legal, então é correto e desejável que o estado se faça presente, por meio da Justiça, para restaurar esse direito agravado.

Mas calma lá. É preciso tomar muito cuidado com o “estado sábio”, dotado de suposta neutralidade moral, que venha nos dizer o que é e o que não é saudável PENSAR.

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