terça-feira, 3 de junho de 2008

Individualismo e Liberalismo: Valores Fundadores da Sociedade Moderna

por João Batista Damasceno(*)

1 - Individualismo

O individualismo é conceito que exprime a afirmação do indivíduo ante a sociedade e o Estado. Liberdade, propriedade privada e limitação do poder do Estado - eis a tônica do Individualismo. Há tendência em se vincular ou relacionar capitalismo e individualismo bem como socialismo e coletivismo. Mas aqui trataremos do conceito expresso por Louis Dumont in, O individualismo: uma perspectiva antropológica da ideologia moderna[1], onde ao lado do conceito de um indivíduo que constitui o valor supremo - caracterizando o individualismo - teremos o indivíduo que se encontra na sociedade como um todo, caracterizando o holismo. É do indivíduo que não pode ser submetido a ninguém, sendo as suas regras pessoais que movem a sua existência que trataremos.

O individualismo é o mais ocidental dos valores. Esta primazia do indivíduo constitui o cerne da herança judaico-cristã. Louis Dumont acentuou como o individualismo se tornou o valor fundador das sociedades modernas. Quando o indivíduo se encontra na sociedade como um todo, trata-se de holismo e não individualismo. Neste sentido, os dois conceitos se opõem. E, em sua obra Louis Dumont apresenta um estudo sobre o desenvolvimento do conceito moderno de indivíduo e conclui: "se o individualismo deve aparecer numa sociedade do tipo tradicional, holista, será em oposicão à sociedade e como uma espécie de suplemento em relação a ela, ou seja, sob a forma de indivíduo-fora-do-mundo. Será possível pensar que o individualismo começou desse modo no ocidente? É precisamente isso o que vou tentar mostrar; quaisquer que sejam as diferenças no conteúdo das representações, o mesmo tipo sociológico que encontramos na Índia - o indívíduo-fora-do-mundo - está inegavelmente presente no cristianismo e em torno dele no começo da nossa era."[2]

Da compreensão que exprime a afirmação do indivíduo ante a sociedade e o Estado temos que o individualismo se opõe ao nacionalismo. Louis Dumont nos diz o seguinte:

"Alguém opõe ao individualismo o nacionalismo, sem explicação. Sem dúvida, é preciso entender que o nacionalismo corresponde a um sentimento de grupo que se opõe ao sentimento "individualista". Na realidade, nação, no sentido preciso e moderno do termo, e o nacionalismo - distinto do simples patriotismo - estão historicamente vinculados ao individualismo como valor. A nação é precisamente o tipo de sociedade global correspondente ao reino do individualismo como valor. Não só ela o acompanha historicamente, mas a interdependência entre ambos impõe-se, de sorte que se pode dizer que a nação é a sociedade global composta de pessoas que se consideram como indivíduos." [3]
Embora seja conceito que permeie a sociedade ocidental, o individualismo não se revelou de um dia para outro em nosso meio, pois "a configuração individualista de idéias e valores que nos é familiar não existiu sempre nem aparece de um dia para outro. Fez-se remontar a origem do "individualismo" a um época mais ou menos remota, segundo, sem dúvida, a idéia que dele se fazia e a definição que se lhe dava."[4]. E mais: "Pode sustentar que o mundo helenístico estava, no que tange às pessoas instruídas, tão impregnado dessa mesma concepção que o cristianismo não teria podido triunfar, a longo prazo, nesse meio, se tivesse oferecido um individualismo de tipo diferente. Eis uma tese muito forte que parece à primeira vista contradizer concepções bem estabelecidas."[5]

Temos, assim, um paralelo entre o indivíduo moderno ocidental e o indivíduo tradicional da antiga sociedade indiana. Segundo Dumont, o termo indivíduo designa duas coisas ao mesmo tempo: um objeto fora de nós e um valor. O primeiro é um sujeito empírico que fala, pensa e quer, é o modelo individual da espécie humana, que se encontra em todas as sociedades. O segundo é o ser moral independente, autônomo, não-social, que representa a ideologia moderna do homem e da sociedade.

Dumont explica que quando o indivíduo constitui o valor supremo, trata-se de individualismo. Nesse caso, o indivíduo não pode ser submetido a ninguém, sendo as suas regras pessoais que movem a sua existência. Quando o indivíduo se encontra na sociedade como um todo, trata-se de holismo. O modelo indiano de sociedade é holista, a sociedade moderna ocidental é individualista.

Para Dumont, a sociedade ocidental da Idade Média aproximava-se da sociedade holista indiana. Na Idade Média, existia uma sociedade cristã governada pela supremacia da Igreja. Esta era constituída por um sistema hierárquico espiritual, sendo que o Papa era o representante supremo do poder. A Igreja era o Estado.

Desta forma Dumont nos diz:

"Se tentarmos ver em paralelo a situação cristã medieval e a situação hindu tradicional a primeira dificuldade está em que, ao passo que na Índia, os brâmanes contentavam-se com sua supremacia espiritual, a Igreja no ocidente exercia também um poder temporal, sobretudo na pessoa de seu chefe, o Papa. Vendo as coisas grosso modo, a Idade Média parece ter conhecido uma dupla autoridade temporal. Além, disso, uma vez que a instância espiritual não desdenhava revestir-se de poder temporal, podia-se perguntar até se a temporalidade não desfrutava, de fato, de uma certa primazia. (...)"[6]
Ainda segundo esse autor, com o surgimento do Estado moderno, extingue-se a harmonia universal do todo com Deus. Para os modernos, o homem basta-se a si mesmo e está em relação direta com sua razão e com Deus. O indivíduo é um ser autônomo, integrante de uma comunidade que forma o Estado, tornando-o o poder supremo. E nos diz:

"Para os modernos, sob a influência do individualismo cristão e estóico, aquilo a que se chama direito natural (por oposição ao direito positivo) não trata de seres sociais mas de indivíduos, ou seja, de homens que se bastam a si mesmos enquanto feitos à imagem de Deus e enquanto depositários da razão. Daí resulta que, na concepção dos juristas, em primeiro lugar, os princípios fundamentais da constituição do Estado (e da sociedade) devem ser extraídos, ou deduzidos, das propriedades e qualidades inerentes no homem, considerando como um ser autônomo, independentemente do todo e qualquer vínculo social ou político."[7]
A ideologia do individualismo funda suas bases sobre a igualdade e a liberdade. Ao desprezarem a hierarquia social, todos os homens tornam-se iguais e livres perante o Estado. As funções determinadas pela posição social que o indivíduo ocupa são abolidas e, conseqüentemente, o Estado não consegue administrar a vida social e individual do homem. Não há referências para se espelhar, a noção de direitos e deveres se desvanece. O homem moderno abdica de todo sistema de crenças e valores, negligenciando a trajetória de sua história social para consagrar a satisfação pessoal. Ocorre uma desintegração do indivíduo em relação à sociedade. Ele vive em função das suas necessidades individuais, de maneira que a existência do outro varia de acordo com sua necessidade.

2 – Liberalismo

O Liberalismo é conceito que se caracteriza por alguns princípios, dentre os quais o individualismo e o igualitarismo. Segundo Dumont, "os princípios fundamentais da constituição do Estado (e da sociedade) devem ser extraídos, ou deduzidos, das propriedades e qualidades inerentes no homem, considerado como um ser autônomo, independentemente de todo e qualquer vínculo social ou político."[8]

Assim, o liberalismo é individualista, defendendo a afirmação do indivíduo ante a sociedade e o Estado; é igualitário, admitindo e garantindo a igualdade do homem enquanto pessoa; é universalista, defendendo a homogeneidade moral da espécie humana; é otimista, admitindo o aperfeiçoamento das instituições sociais de cada sociedade. "O valor infinito do indivíduo é, ao mesmo tempo, o aviltamento, a desvalorização do mundo tal como existe..."[9] Assim, o liberalismo defende a liberdade como direito intrínseco de todo indivíduo e toda autoridade é limitada por esse direito.

O liberalismo é uma teoria ou doutrina de liberdade política e de liberdade econômica. De conformidade com os quesitos anteriores, orienta a ação do Estado e de qualquer autoridade, visando ao bem comum, sem ferir os direitos individuais.

Não se pode falar em liberalismo sem partir das grandes transformações que propiciaram o surgimento do mundo moderno que, no individualismo, encontrou seu fundamento. A valorização do homem – promovida pelo humanismo – aliada aos princípios da propiciados pelas mudanças nas concepções religiosas, faz surgir o liberalismo que, por sua vez, prepara o campo fértil para o surgimento da democracia e também para o desenvolvimento do capitalismo. Antes quase não se valorizava o "indivíduo" pois, na Idade Média, a cultura era impessoal, segundo Dumont, do tipo holista.

Dentro desse tema, muitos são os aspectos que poderiam sem abordados, partindo-se desse momento da valorização do homem. Pode-se, portanto, partir da contribuição daqueles que desencadearam esse processo, dando-lhe impulso e consistência, até chegar ao ponto de ser (o liberalismo), em certo momento, confundido com o modelo da própria civilização ocidental. O pensamento de Santo Agostinho é central para este problema e seu gênio pressentiu o desenvolvimento vindouro.

Quanto à democracia, abandonada e quase esquecida depois da Grécia Clássica[10], é do liberalismo que ela evolui na Idade Moderna. Seu aparecimento se dá entre os puritanos ingleses, devido a necessidade de assegurar a legitimidade de seus representantes e da organização das suas comunidades.

Esta nova maneira de gerenciar os assuntos internos das seitas e igreja é estendida para a esfera política e aos interesses econômicos, firmando cada vez mais essa nova doutrina que, a partir daí, muito mais que uma filosofia, passa a assumir o caráter de uma ideologia . Assim, ao mesmo tempo em que se levantam as questões sobre os direitos e garantias do cidadão, impõe-se a necessidade de discutir e justificar o direito da propriedade. Direito, igualdade e garantias são elementos de fundamental importância para a afirmação da propriedade. Seus detentores buscam e passam a influir na administração e nos assuntos do Estado. Em oposição ao princípio do Direito Divino, o Governo passa a ser encarado sob novo ângulo, até chegar ao ponto de ser considerado como representante dos eleitores. Esses eleitores (inicialmente apenas os proprietários) têm interesse em influir no Governo pois, afinal de contas, são eles que têm algo a perder. E é a partir daí que se compreende porque a legislação eleitoral se preocupa, no início, com a representação baseada nas posses.

As grandes transformações empreendidas ao final da Idade Média têm como ponto de fundamental importância, como já foi dito, a valorização do homem. Humanismo e Reforma, principalmente, trazem à luz a pessoa humana, que passa a ser o centro do Universo, em que busca conhecer esses valores, e onde alcança posição de destaque a discussão do tema da liberdade.

3 - Individualismo e liberalismo

Numa primeira etapa, o ponto de partida foi a reivindicação da liberdade de consciência, causando uma ruptura com o tradicionalismo imperante na Idade Média. A justificação pela fé, através da qual cada um se torna responsável perante Deus, sem a intermediação de sacerdotes ou de santos, abre um novo caminho para se chegar a Deus. A tradução da Bíblia para o vernáculo, por Lutero (e por outros, em outras línguas, bem como a sua publicação e popularização com a invenção da imprensa), vem oferecer essa esperança e essa firmeza, pela qual, cada um, pelo seu próprio entendimento, e estribado em sua própria fé, pode se dirigir imediata e diretamente a Deus. É o princípio do chamado "sacerdócio universal dos crentes". Para sua justificação o homem precisa unicamente crer, fazendo-se participante da "graça divina", a qual vem pela fé, não por ritos cerimoniais, ou atitudes exteriores, coletivas, ministradas por outros.

Nesse contexto, a principal questão consistia em devolver à consciência a liberdade de seu entendimento direto com Deus, de forma pessoal, sem necessidade de qualquer intermediário. Desta forma, "Os puritanos que fundaram as colônias na América do Norte tinham dado o exemplo do estabelecimento de uma Estado por contato. Assim, os famosos "Peregrinos" do May-flower concluíram um pacto de estabelecimento antes de fundarem New Plymouth em 1620, e outros fizeram o mesmo. Vimos os Levellers irem mais longe em 1647 e acentuarem os direitos do homem como homem e, sobretudo, o direito à liberdade religiosa. Esse direito fora introduzido desde cedo em várias colônias americanas: em Rhode Island por um alvará de Carlos I (1543), na Carolina do Norte pela Constituição redigida por Locke( 1669)."[11]

A "revolução copernicana" fez enormes estragos na hierarquização medieval. À semelhança da astronomia, também na sociedade, há uma alteração no eixo gravitacional. Nesse universo infinito, do qual Deus é o verdadeiro centro, cada ponto é, da sua perspectiva, uma espécie de centro relativo.

É, portanto, nessa individualização que se revela na busca do "indivíduo espiritual", em oposição ao simples homem como raça, povo, partido, corporação, família ou qualquer outra forma de coletivo, buscando as profundezas da subjetividade, que o homem acabará criando as bases para uma filosofia – ética, teoria jurídica, política – que é o liberalismo.

Uma etapa do liberalismo é o seu caráter político. Toma consciência com as obras de Locke e Montesquieu e tem o seu primeiro grande momento na Revolução Gloriosa (Inglaterra, 1688/89). Esse liberalismo político-jurídico, que tem suas raízes na Inglaterra medieval, confunde-se com o desenvolvimento das garantias constitucionais da liberdade.

É, no entanto, com John Locke que os temas da liberdade e do indivíduo se corporificam numa doutrina política. Suas obras, sobretudo o Segundo Tratado Sobre o Governo Civil mostram a "vontade" e a "liberdade" como potências do sujeito, quando "ser livre é poder fazer ou não fazer o que se quer". Essa liberdade humana aparece como a responsabilidade de cada um, não pela sua vontade, mas pelos seus atos.

Ao tratar do "estado natural" (também utilizado por Hobbes para justificar o absolutismo), Locke o faz para justificar a liberdade. Para ele a razão, que é a lei natural, ensina toda a humanidade, de que sendo todos iguais e independentes, ninguém poderá prejudicar o outro em sua vida, saúde, liberdade ou posses. A propriedade aparece aí como um direito decorrente do produto de seu corpo e a obra de suas mãos.

Na justificativa da liberdade e contra a monarquia absoluta, afirma que a sociedade civil, produto do "consentimento livre" de todos os seus membros, não pode tolerar que alguém dela faça parte, colocando-se à margem ou acima da lei comum. Surge assim uma nova ordem política liberal com a supremacia do poder legislativo, porquanto é o delegado direto dos membros da comunidade. Mas também este não pode afastar-se do bem público. O legislativo não pode ser ininterrupto, nem os legisladores devem ser executores das leis votadas, sendo que eles mesmos estão sujeitos a elas. O executivo deve ser um poder diverso, subordinado ainda assim ao legislativo. Mas o verdadeiro soberano passa a ser o povo, pois é ele, e não o legislativo, o detentor do verdadeiro poder soberano. O poder é um depósito confiado aos governantes, em proveito do povo, e não uma submissão irrestrita. Se os governantes agem de maneira contrária ao fim para o qual haviam recebido a autoridade, o povo pode retirar aquele depósito, isto é, pode retirar aquela delegação, retomando a soberania inicial, podendo confiá-la a quem apresente melhores condições para exercer o poder. Para Locke não há um contrato de submissão, mas apenas uma delegação.

Outro aspecto a considerar diz respeito à separação do domínio temporal do espiritual. Sendo a Igreja uma sociedade livre e voluntária não pode estar sujeita ou atrelada ao governo, pois, "não cabe ao magistrado civil o cuidado das almas", em primeiro lugar porque não parece que Deus jamais tenha delegado autoridade a um homem sobre outro, ou para induzir outro homem a aceitar sua religião. Em segundo lugar, o cuidado das almas não pode pertencer ao magistrado civil porque seu poder consiste totalmente em coerção. Isto porque uma coisa é insistir por meio de argumentos, outra por meio de decretos. Em terceiro lugar, o cuidado da salvação das almas não pode, de maneira nenhuma, pertencer ao magistrado civil, pois a limitação às leis de cada país levantaria obstáculos no caminho, a ponto de os homens deverem a sua felicidade eterna ou miséria, simplesmente ao acidente de seu nascimento. Recorrendo a Locke, aprende-se que " `Para entender o poder político corretamente, e derivá-lo de sua origem, devemos considerar o estado em que todos os homens naturalmente estão, o qual é um estado de perfeita liberdade para regular suas ações e dispor de suas posses e pessoas do modo como julgarem acertado, dentro dos limites da lei da natureza, sem pedir licença ou depender da vontade de qualquer outro homem."[12]

O liberalismo atinge outro aspecto, quando seus princípios são aplicados à economia, o que se deve principalmente a Adam Smith, embora os fisiocratas já propugnassem por uma liberdade total (da natureza) mas não dispensavam a necessidade de um Estado forte para garantir as leis da natureza. Não havendo esse controle, e se cada um seguir apenas o seu interesse, dar-se-ia o que, para Hobbes, seria o caos total, através da luta de todos contra todos. Aí não haveria lugar para as noções de justo e injusto. Veja-se:

"Portanto, onde não há o seu, isto é, não há propriedade, não pode haver injustiça. E onde não foi estabelecido um poder coercitivo, isto é, onde não há Estado, não há propriedade, pois todos os homens têm direito a todas as coisas. Portanto, onde não há Estado nada pode ser injusto. De modo que a natureza da justiça consiste no cumprimento dos pactos válidos, mas a validade dos pactos só começa com a instituição de um poder civil suficiente para obrigar os homens a cumpri-los, e também só aí que começa a haver propriedade."[13]
A vinculação do liberalismo econômico a uma doutrina política liberal completa o quadro do liberalismo clássico. Dumont diz que "Com o predomínio do individualismo contra o holismo, o social nesse sentido foi substituído pelo jurídico, o político e, mais tarde, o econômico."[14]

Segundo Dumont, "O individualismo subentende, ao mesmo tempo, igualdade e liberdade. Distingue-se, portanto, com razão, uma teoria igualitária "liberal", a qual recomenda uma igualdade ideal, igualdade de direitos ou de oportunidades, compatível com a liberdade máxima de cada um, e uma teoria "socialista" que quer realizar a igualdade nos fatos, por exemplo, abolindo a propriedade privada."[15] E mais: "não basta a igualdade de princípio, reclama-se uma igualdade "real"'[16]

4 - John Locke e o individualismo liberal

O modelo jusnaturalista de Locke parte do estado de natureza que, pela mediação do contrato social, realiza a passagem para o estado civil. Em sua concepção individualista, os homens viviam originalmente num estágio pré-social e pré-político, caracterizado pela liberdade e igualdade, denominado estado de natureza (predominava neste estado uma relativa paz, concórdia e harmonia). Nesse estado pacífico os homens já eram dotados de razão e desfrutavam da propriedade que, designava simultaneamente Para Locke, a propriedade já existe no estado de natureza e, sendo uma instituição anterior à sociedade, é um direito natural do indivíduo que não pode ser violado pelo Estado. Locke defende que, o estado de natureza relativamente pacífico, não está isento de inconvenientes, como a violação da propriedade que, na falta de lei estabelecida, de juiz imparcial e de força coercitiva para impor a execução das sentenças, coloca os indivíduos singulares em estado de guerra uns contra os outros. Para ele, o contrato social é um pacto de consentimento em que os homens concordam livremente em formar a sociedade civil para preservar e consolidar ainda mais os direitos que possuíam originalmente no estado de natureza. No estado civil os direitos naturais inalienáveis do ser humano à vida, à liberdade e aos bens estão melhor protegidos sob o amparo da lei, do árbitro e da força comum de um corpo político unitário. A passagem do estado de natureza para a sociedade político/civil se opera quando, através do contrato social, os indivíduos singulares dão seu consentimento unânime para a entrada no estado civil; após este passo ocorre a escolha pela comunidade de uma determinada forma de governo cedendo lugar ao “princípio da maioria” mas, Locke ressalva que “todo o governo não possui outra finalidade além da conservação da propriedade”.

Para Locke quando o legislativo ou o executivo violam a lei estabelecida e atentam contra a propriedade, o governo deixa de cumprir o fim a que fora destinado, tornando-se ilegal e degenerado em tirania, formando a estado de guerra; este estado de guerra imposto ao povo pelo governo configura a dissolução do estado civil e o retorno ao estado de natureza, onde a inexistência de um árbitro comum faz de Deus o único juiz, expressão utilizada por Locke para indicar que, esgotadas todas as alternativas, o impasse só pode ser decidido pela força. Veja-se: "... em todos aqueles casos em que não há juiz sobre a Terra, não tem o povo outro remédio além do apelo aos céus."[17]

É necessário retratar que Locke acha impossível os atuais governantes sobre a Terra obterem qualquer proveito, ou derivem a menor sombra de autoridade daquilo que é tido como a fonte de todo poder. Ele acha que o poder de um magistrado de um súdito deve ser distinguido do poder de um pai sobre o filho, de um senhor sobre seu servo, de um marido sobre sua esposa e de um nobre sobre seu escravo. Desta forma, o poder político é o direito de fazer leis com pena de morte, e conseqüentemente todas as penalidades menores para regular e preservar a propriedade, e o de empregar a força da comunidade da execução de tais leis e na defesa da comunidade contra a agressão estrangeira, e tudo isso apenas em prol do bem público.

Um estado de natureza é onde existe perfeita liberdade para ordenar as ações e regular as posses e as pessoas tal acharem conveniente, nos limites da lei da natureza; neste estado deve ser recíproco qualquer poder e jurisdição.

O estado de guerra é um estado de inimizade[18] e destruição. Desta forma, aquele que tenta colocar à outrem sob seu poder absoluto, põe-se por causa disto num estado de guerra com ele, devendo-se interpretar isto como uma declaração de um desígnio em relação à sua vida. O estado de natureza e o estado de guerra, estão tão distantes um do outro como um estado de paz, boa vontade, assistência mútua e preservação está de um estado de inimizade, malícia, violência e destruição mútua.

É o trabalho que atribui a maior parte do valor à terra, sem o qual dificilmente ela valeria alguma coisa; assim, embora a natureza tudo nos ofereça em comum, o homem, sendo senhor de si próprio e proprietário de sua pessoa e das ações ou do trabalho que executa, teria ainda em si mesmo a base da propriedade. O homem quando nasce, com direito a perfeita liberdade e gozo incontrolado de todos os direitos e privilégios da lei da natureza, tem, por natureza, o poder não só de preservar a sua propriedade. É preciso que se realce "que os tratados de Locke considerados políticos contêm a ata de batismo da propriedade privada[19]." Locke acha que a monarquia absoluta, que alguns consideram o único governo no mundo, é, de fato, incompatível com a sociedade civil, não podendo por isso ser uma forma qualquer de governo civil, porque o objetivo da sociedade civil consiste em evitar e remediar os inconvenientes do estado de natureza que resultam necessariamente de poder cada homem ser juiz em causa própria. Uma vez que a maioria, a partir da primeira união dos homens em sociedade, detém todo o poder da comunidade naturalmente em si, pode empregá-lo de tempos em tempos para fazer leis destinadas à comunidade e que executam por meio de funcionários que ela própria nomeia: nesse caso, a forma de governo é uma perfeita democracia; pode-se colocar o poder de fazer leis nas mãos de alguns homens escolhidos, seus herdeiros e sucessores: nesse caso, ter-se-á uma oligarquia; ou então nas mãos de um único homem e constitui-se nesse caso uma monarquia.

O poder legislativo é o que tem o direito de estabelecer como se deverá utilizar a força da comunidade no sentido da preservação dela própria e dos seus membros. Os poderes executivo e federativo de qualquer comunidade sejam realmente distintos em si, dificilmente podem separar-se e colocar-se ao mesmo tempo em mãos de pessoas distintas.

O pátrio poder consiste somente no que os progenitores possuem sobre os filhos para os governarem visando ao bem deles até que atinjam o uso da razão ou um estado de conhecimento no qual se suponha serem capazes de entender a lei, seja a da natureza, seja a municipal do próprio país, pela qual terão que reger-se – capazes, repito, de sabê-lo tão bem como outros que vivem como homens livres sob a lei. O poder político é o cada homem possuía no estado de natureza e cedeu às mãos da sociedade e dessa maneira aos governantes, que a sociedade instalou sobre si mesma, com o encargo expresso ou tácito de que seja empregado para o bem e para a preservação de sua propriedade. O poder despótico é o poder absoluto e arbitrário que o homem tem sobre outro para tirar-lhe a vida sempre que o queira.

Para falar sobre dissolução do governo deve, em primeiro lugar, distinguir entre a dissolução da sociedade e a dissolução do governo; outra maneira é dissolver o governo que consiste em agirem o legislativo ou o príncipe contrariamente ao encargo que receberam.

5 - Liberdade e propriedade em Locke

A relação que Locke faz entre “liberdade e propriedade” é que a liberdade faz parte da propriedade (vida, liberdade e bens), ou seja, sempre liberdade e propriedade devem estar presentes em um Estado para que este não enfrente problemas, assim vivendo de modo pacífico; desta forma, a “propriedade privada limitada pelo uso”.
Para Locke, a propriedade já existe no estado de natureza e, sendo uma instituição anterior à sociedade, é um direito natural do indivíduo que não pode ser violado pelo Estado; desta forma, o trabalho era o fundamento originário da propriedade.[20]

O estado de natureza os homens são dotados de razão e desfrutam da propriedade que, numa primeira acepção genérica utilizada por Locke, designa simultaneamente a vida, a liberdade e os bens como direitos naturais do ser humano. "O individualismo subentende, ao mesmo tempo, igualdade e liberdade."[21]

Em um Estado Civil, o principal objetivo é garantir a propriedade; assim, os direitos naturais inalienáveis do indivíduo à vida, à liberdade, e à propriedade constituem o cerne do estado civil; estando melhor protegidos sob o amparo da lei, do árbitro e da força comum de um corpo político unitário, pois "A ausência de um juiz comum dotado de autoridade coloca todos os homens em estado de natureza; a força sem direito sobre a pessoa de um homem causa o estado de guerra, havendo ou não um juiz comum."[22]

O contrato social de Locke é um pacto de consentimento em que os homens concordam livremente em formar a sociedade civil para preservar e consolidar ainda mais os direitos que possuíam originalmente no estado de natureza. Desta forma ninguém perde sua liberdade mas, apenas deixa um líder guiá-lo sendo que, a propriedade possui pontos intransferíveis como a vida e transferíveis como os bens.

5 - Liberalismo em Stuart Mill

Para Stuart Mill, o homem tem, até certo ponto, o poder de modificar o seu caráter, se assim o quiser. Esta afirmação traz no fundo a questão da escolha e da vontade. No seu pensamento estão presentes duas fidelidades intelectuais, uma para a filosofia empírico-utilitária e outra para o liberalismo. Ambas se acham entrelaçadas, de maneira tal que uma exige a presença da outra.

Inspirado em Tocqueville, especialmente em A Democracia na América, Stuart Mill crê na prioridade do indivíduo na obra de construção da história. Ao escrever sua obra pensou mais no futuro do que no presente imediato. Seu herói liberal é aquele que pretende não a força e o poder, mas tão somente a liberdade de ensinar o caminho. Tais homens serão uma minoria e precisam de um solo bem conservado. Afinal, o gênio não pode respirar livremente senão em uma atmosfera de liberdade. Sua obra se torna importante pela análise que faz dos perigos que ameaçam a liberdade. Admite a intervenção do Estado somente em alguns casos. E isto para impedir um aumento no poder do Estado, o que nulifica o indivíduo. E quanto à educação, o Estado não deve dirigi-la, mas garanti-la. Governo e instituições livres são garantias de permanência da liberdade.

A concepção individualista, num certo sentido, coloca o homem antes da sociedade e vê nesta última, principalmente na sua instância política, um elemento de artificialidade que não aparece na concepção organicista. Para Mill a tirania da maioria é tão odiosa quanto a da minoria. Isto porque ambas levariam à elaboração de leis baseadas em interesses classistas. Um bom sistema representativo é aquele que não permite “que qualquer interesse seccional se torne forte o suficiente para prevalecer contra a verdade, a justiça e todos os outros interesses seccionais juntos”.

Para compreendermos o valor que Mill atribui à democracia, é necessário observar com mais atenção a sua concepção de sociedade e indivíduo. Para eles, a realidade da economia de mercado constitui-se num paradigma teórico para a construção de seus modelos de sociedade e de indivíduo. Desta forma, a natureza humana parece-lhes essencialmente pragmática. O homem é um maximizador do prazer e um minimizador do sofrimento. A sociedade é o agregado de consciências autocentradas e independentes, cada qual buscando realizar seus desejos e impulsos.

Com a perspicácia que lhe é característica, Mill aponta para o fato de que uma sociedade livre, na medida mesmo em que propicia o choque das opiniões e o confronto das idéias e propostas, cria condições ímpares para que “a justiça e a verdade” subsistam.

6 - Conclusão

Se a configuração individualista de idéias e valores que nos é familiar não existiu sempre nem apareceu de um dia para outro, "A Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, adotada pela Assembléia Constituinte no verão de 1789 marca, num sentido, o triunfo do indivíduo"[23] e o sistema de direitos e garantias contemporâneo é o seu sucedâneo.


Bibliografia

CHEVALLIER, Jean-Jacques. As grandes obras políticas de Maquiavel a nossos dias. Rio de Janeiro: Agir, 1983.

DUMONT, Louis. O individualismo: uma perspectiva antropológica da sociedade moderna. Rio de Janeiro: Rocco, 1993.

HELD, David. Models of Democracy. Cambridge/UK: Polity Press, 1987.

HOBBES, Thomas. Leviatã ou matéria, forma e poder de um estado eclesiástico e civil. São Paulo: Nova Cultural, 1997 (Os Pensadores).

LOCKE, John. Dois Tratados sobre o Governo. São Paulo: Martins Fontes, 1998.

MILL, John Stuart. Sobre a liberdade. Portugal: Publicações Europa-América, 1997.

____. Considerações sobre o governo representativo. Brasília: Ed. UnB, 1981.

ROUSSEAU, Jean-Jacques. Do contrato social. São Paulo: Nova Cultural, 1997 (Os Pensadores).

TOCQUEVILLE, Alexis de. A democracia na América. São Paulo: Editora Nacional, 1969.


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Notas:

[1] DUMONT, Louis. O individualismo: uma perspectiva antropológica da sociedade moderna. Tradução de Álvaro Cabral. Rio de Janeiro: Rocco, 1985.

[2] DUMONT, L. Op. Cit., pag. 38/39.

[3] DUMONT, L. Op. Cit., pag. 21.

[4] DUMONT, L. Op. Cit., pag. 22.

[5] DUMONT, L. Op. Cit., pag. 39.

[6] DUMONT, L. op. Cit., pag. 80.

[7] DUMONT, L., Op. Cit., pag. 87.

[8] DUMONT, L. Op. Cit., pag. 87

[9] DUMONT, L. Op. Cit., pag. 43.

[10] HELD, David. Models of Democracy, pag. 15.

[11] DUMONT, L. Op. Cit., pag. 110/111.

[12] LOCKE, J. O segundo tratado sobre o governo, §4º, pag. 381/382.

[13] HOBBES, T., Leviatã, pag. 123/124.

[14] DUMONT, L. Op. Cit., pag. 91

[15] DUMONT, L. Op. cit., pag. 91.

[16] Idem.

[17] LOCKE, J., Op. Cit,. § 167, pag. 535.

[18] LOCKE, J. Op. Cit., Cap. III.

[19] DUMONT, L. Op. Cit, pag. 22.

[20] LOCKE, J. Op. Cit., Cap. V.

[21] DUMONT, l. Op. Cit., pag. 105.

[22] LOCKE, J. Op. Cit., § 19, pag. 398.

[23] DUMONT, L. Op. Cit., pag. 109.



(*) O autor é bacharel em Ciências Sociais (IFCS/UFRJ) e em Direito (UFF), mestrando de Ciência Política do IFCS/UFRJ e ocupa o cargo de Juiz de Direito no Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro.

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