segunda-feira, 30 de junho de 2008

O homem ético-moral e o homem legal — Ou: “Por que discordo de André Petry”

por Reinaldo Azevedo

Eu sou contrário ao projeto de lei que está no Senado, já aprovado na Câmara, que, na sua explicação benigna, criminaliza a chamada homofobia. André Petry, editor especial e colunista de VEJA, é favorável. Eu considero que o projeto, sob o pretexto de proteger direitos, concorre para a incivilidade e a censura de opinião; ele, ao contrário, acredita que, aprovado o texto, teremos um mundo melhor. Assim como pretendo que creditem à boa-fé as minhas restrições ao projeto, faço o mesmo com Petry: aposto que a sua motivação para defendê-lo decorre de seu alinhamento com os princípios de justiça e igualdade.

Melhor assim, não é? Uma divergência entre pessoas de boa-fé.

Na VEJA desta semana, ele escreve uma coluna intitulada “A fé dos homofóbicos”. As experiências históricas que ele evoca para justificar a sua tese são, a meu ver, despropositadas. Mas não é um despropósito que me empurraria para explicitar aqui a divergência. O que me incomodou profundamente em seu texto foi uma frase que, parece-me, soa como um terrível norte ético, a saber:

“Matar é crime não porque seja imoral, mas porque a sociedade entendeu que a vida deve ser preservada. Dúvidas? Recorram ao Supremo Tribunal Federal. Na democracia, é assim. Lei não é bíblia de moralidade.”


Assim não, Petry. A sua frase abre as portas, conceitualmente ao menos, para a barbárie e para os assassinatos em massa praticados pelo estado.

Começo opondo uma indagação a sua afirmação: “Por que a sociedade entendeu que a vida deve ser preservada?” Teria havido em tal escolha — que, note-se, ainda não é universal — apenas o triunfo de alguma imposição econômica ou de outra base material qualquer?

Considero que a moral é de ordem privada, pessoal, e o que o colunista chama de “moral”, portanto, eu prefiro chamar “ética” — esta, sim, coletiva. Ora, não haverá uma ética — que não precisa ser religiosa — a nos convidar ao “Não matarás”? O valor que torna a vida do outro inviolável, tenha origem em algum princípio religioso ou na tradição humanista, não se sobrepõe, será, aos pactos de ocasião da sociedade?

A questão é tão importante que nos remete ao cerne das democracias representativas. Nem sempre as leis consolidadas refletem o pensamento da maioria. O estado democrático e de direito também disciplina as vontades da sociedade — e não é apenas disciplinado por suas vontades. Não é preciso ir longe: a maioria, no Brasil, é favorável à pena de morte, mas ela inexiste na lei. Não tenho pesquisa a respeito, mas temo que não seria impopular o linchamento de autores de crimes hediondos. E, no entanto, isso é ilegal porque moralmente inaceitável.

E assim é por causa dos valores que Petry, com certo desdém, chama “morais”. São eles que impedem que a “sociedade” faça o que, a uma maioria, poderia parecer tão simples e eficaz — embora a pratica nos empurrasse para a barbárie.

Ainda que a sociedade entendesse, Petry, que matar é legítimo, continuaria “imoral” (ou “aético”) segundo dogmas de várias religiões, sim, mas também segundo uma já longa tradição do “humanismo laico” — escrevo “humanismo laico” porque há humanismos religiosos, o que os ateus e agnósticos insistem em ignorar.

Talvez Petry pudesse ter escrito: “Matar é imoral, sim, mas também é crime porque a sociedade entendeu que a vida deve ser preservada (...)”. Aí, sim: o “crime” é um dado juridicamente determinado — já a moral e a ética são mais fluidas e comportam bem mais divergências. Ora, sociedades são mais ou menos civilizadas, mais ou menos humanistas, mais ou menos igualitárias, a depender do que permitem e do que proíbem, do que é e do que não é aceitável.

É inevitável apontar que a afirmação de Petry justificaria, sem reservas, os dois totalitarismos do século passado: comunismo e fascismo. A sociedade alemã, na década de 30, decidiu que os direitos então assegurados dos judeus não deveriam ser preservados. E deixou de ser crime expropriar seus bens, persegui-los e confiná-los — a “solução final” se fez ao arrepio até daquele, digamos, “estado totalitário de direito”. Mas estava, sem dúvida, adequada ao que era, ao menos, o silêncio cúmplice da maioria. Em nome também da maioria, num estado igualmente legal, impôs-se o terror soviético

Chego, então, a uma distinção importante, geralmente maltratada por aí. Costumamos usar, a torto e a direito, a expressão “estado democrático de direito”, como se fosse uma unidade. Não é. Falta sempre um “e” no conjunto: “estado democrático E de direito”. Este é o par desejável. Por parceiros complementares, devem sempre andar juntos. Porque não são uma coisa só, podem andar divorciados.

As ditaduras organizadas tendem a ser “estados de direito” — vale dizer: o autoritarismo (ou totalitarismo) está na lei. Isso não faz delas democracias, não é? Da mesma sorte, pode-se pensar, por hipótese ao menos, numa sociedade em que a vontade da maioria fosse sendo sempre aplicada caso a caso, sem gerar nem sequer jurisprudência — já que um Judiciário seria desnecessário. Apelar-se-ia sempre a tribunais populares. Sem dúvida, seria uma forma de poder do povo — que duraria pouco. Sem o “estado de direito” para auxiliá-la, avançaria para o terror, o banditismo, o gangsterismo.

Stálin e Hitler consideravam que, sob certas circunstâncias — e como eles as encontravam, não? —, matar não era nem imoral nem criminoso. A segunda questão, ele tiravam de letra porque eram os donos da lei. Já a primeira... Bem, eles eram caudatários de uma concepção de poder que concede “ao coletivo” a licença de definir o que é moral e o que é imoral. Eles não teriam problema nenhum em conviver com este norte conceitual: “Matar é crime não porque seja imoral, mas porque a sociedade entendeu que a vida deve ser preservada.”

Aí Petry nos remete ao STF caso hesitemos um pouco: “Dúvidas? Recorram ao Supremo Tribunal Federal. Na democracia, é assim. Lei não é bíblia de moralidade.” Pois é. Acho que ele faz a leitura perversa, que sempre temi que fosse feita, de reiteradas manifestações de alguns ministros quando foi votada a liberação das pesquisas com células-tronco embrionárias. A maioria deles — mas com especial ênfase o Robespierre da genética, Celso de Mello — fez questão de declarar o caráter laico do estado brasileiro (e é mesmo), como se a única restrição às tais pesquisas fosse de natureza religiosa. Mais: nas pegadas de Ayres Britto, a maioria dos togados considerou que só é vida o que está constitucionalmente protegido. Entendo. Há quem não acredite em Deus para definir o princípio da vida. Preferem Ayres Britto...

Ora, e se, sob certas circunstâncias, o Supremo passar a autorizar assassinatos, por exemplo? A prática passará a integrar, sem dúvida, o “estado de direito” — será legal. Deveríamos, então, por isso, deixar de considerar a dimensão moral ou ética de tal autorização? “Mate-se. Lei não é Bíblia de moralidade”.

Não! O homem moral — a partir de um conjunto de valores éticos que incorporam os chamados "direitos humanos" — ainda é aquele que orienta o homem legal, Petry. É e será sempre o questionamento desse homem ético e moral que vai pressionar para mudar as leis, para torná-las mais adequadas aos desafios do mundo contemporâneo.

Fosse o contrário, fosse o "homem legal" o ponto máximo a que poderia chegar "o homem ético e moral", estaríamos condenados a viver sob o tacão totalitário.

Se um dia a nossa sociedade entender que é legal matar, aconselho-os a não se transformar em homicidas. Ainda que fosse legal, seria imoral.

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