terça-feira, 17 de junho de 2008

Liberalismo e religião

por Pedro Sette Câmara, n'O Indivíduo

Continuando a discussão sobre questões de identidade, costumo dizer que o liberal ateu que ostenta seu desprezo pela religião nada mais é do que uma imagem refletida do religioso que só tem palavras acusatórias para o mercado. O problema que os dois têm é o mesmo: a incapacidade de abandonar suas categorias habituais de pensamento para olhar um outro domínio da realidade, esquecendo – ou ignorando – que a “unidade do real” só existe no plano metafísico. Dessa incapacidade de enxergar o outro nasce um festival de besteiras: o liberal ateu acusa a religião de coisas que ela não é, o religioso acusa o mercado de coisas que ele não faz.

Eu, por exemplo, sou católico, e sei que a Igreja Católica Romana teve altos e baixos na defesa da liberdade. Ajudou a libertar os escravos em Roma, condenou em documentos a escravidão dos índios, estabeleceu a importância dos indivíduos pela doutrina da salvação da alma individual, mas também criou a Inquisição – a qual, mesmo não tendo sido quantitativamente tão terrível quanto se diz, continua terrível por uma questão de princípios. Contudo, não me sinto tão puro a ponto de poder apontar o dedo para a Igreja. Também sei que as idéias liberais, sobretudo na área econômica, podem facilmente ser apropriadas por grupos de interesse político ou mascarar realidades tenebrosas – como a constituição americana mascarou a mesma escravidão. Por isso acredito que se algum defensor do capitalismo viesse me perguntar como posso declarar que pertenço a uma religião cujos membros têm comportamento tão censurável, meu primeiro instinto seria responder que, em nome da mesma coerência, ele que também preferisse evitar qualquer associação, inclusive ideológica, com todos os empresários, já que entre eles há muitos trapaceiros, rentistas e pilantras.

Um jeito simples de demonstrar que essa disputa é apenas uma competição infantil do tipo “você é bobo!”, “e você é feio e bobo!” é a facilidade com que cada um dos lados veste a roupa do próprio estereótipo. O religioso logo parece um autoritário ranheta que fica falando de “respeito à vida”, e o liberal ateu logo parece um mesquinho obtuso que só pensa em ganhos materiais. Quanto mais os dois lados se atacam, mais falam bobagem.

Neste ponto vemos o quanto a hostilidade mútua nasce de uma postura antifilosófica. Uma discussão como essa, que não passa de uma competição de xingamentos para tentar afirmar a própria identidade, está muito longe da defesa de alguma verdade objetiva. A melhor maneira de agir em relação ao outro nunca é olhar para a própria visão de mundo e perguntar-se onde encaixá-lo. Não se trata de negar a própria visão de mundo, mas de sempre acreditar na própria ignorância e na possibilidade de ser desmentido. Ou ainda, de simplesmente acreditar que o mundo pode ser mais complexo do que se julga.

Agora, se é verdade que religiosos que crêem numa sociedade (mais ou menos) planejada e liberais ateus teriam grandes coisas para oferecer uns aos outros, não é nem disso que venho falar aqui. Os próprios liberais ateus e cientificistas deveriam atentar para o próprio liberalismo, que se baseia na virtude da prudência e não na da força. É mais prudente estudar a religião antes de sair por aí falando besteira. Os religiosos, por sua vez, podem atentar para o princípio da caridade: não deixe de olhar para alguém com generosidade só porque vocês parecem crer em coisas diferentes. O liberal deve lembrar que o liberalismo não é uma visão global do mundo, mas uma doutrina política baseada na natureza humana. O religioso deve lembrar que a perfeição não é possível neste mundo, e muito menos no plano social.

Como católico, acredito – e também a Igreja o afirma – que a liberdade é indissociável da natureza humana, pois Deus nos deu o livre-arbítrio. Mas você também pode ser ateu e acreditar que a liberdade está necessariamente embutida na natureza humana – basta observar que o ser humano é o animal racional, ou intelectual, e que a liberdade decorre necessariamente do intelecto, já que não é possível afirmar a existência de um limite para o intelecto sem automaticamente supor a possibilidade de transcender esse mesmo limite. A partir dessa premissa comum, ateus e religiosos podem discutir seriamente a necessidade de uma ordem social que respeite a liberdade, uma ordem baseada na prudência (o outro pode estar certo, o outro tem o direito de fazer o que acha certo, desde que não prejudique a liberdade / propriedade alheia), em vez de simplesmente trocar acusações e culpar uns ao outros por males que nenhum dos dois grupos causou.

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