terça-feira, 17 de junho de 2008

Liberalismo: filosofia e ética - Parte I

por João Luiz Mauad
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Muitos pensam que o liberalismo está restrito à sua vertente econômica, de defesa do livre mercado, da não intervenção estatal, dos baixos impostos, etc. Ignoram por completo o fato de que ele engloba um conjunto de princípios e argumentos morais e filosóficos que vão muito além dos aspectos meramente econômicos. Evidentemente, este não é o espaço adequado para a exposição completa e minuciosa de um tema tão abrangente porém, mesmo correndo o risco de perder-me na cilada da superficialidade, segue uma breve introdução dos princípios éticos e filosóficos que regem a doutrina liberal.

1. O individualismo

O ponto de partida da teoria liberal é o individualismo, isto é, o entendimento de que o indivíduo é o centro e a justificativa da análise social e, por extensão, do ordenamento político. Esta premissa é clara, evidente e lógica: só o indivíduo goza de existência real e só ele é capaz de raciocinar, escolher e agir.

O ser humano não se concebe de outra forma que não seja a individual. Não existe algo assim como "o homem coletivo". Por isso, o princípio ético fundamental pelo qual se move um liberal é o da liberdade individual.

Mas, o que vem a ser liberdade? Tomando a famosa definição de Berlin, os liberais preferem a liberdade negativa, que consistiria na ausência de obstáculos externos que impeçam o indivíduo de levar a cabo as suas próprias decisões.

O liberalismo entende o funcionamento das sociedades como resultado exclusivo da "ação humana". Neste sentido, a visão da comunidade como um ente orgânico, provido de vida própria e com fins distintos e/ou superiores aos das pessoas que a integram é uma completa falácia. Com efeito, o "bem comum", o "interesse geral" e outros conceitos holísticos carecem de significado e identidade efetiva.

É importante salientar que a filosofia individualista, como bem descreveu Hayek, não parte do pressuposto de que o homem seja egoísta ou deva sê-lo, como muitas vezes se afirma. Parte apenas do fato incontestável de que os limites dos nossos poderes de imaginação nos impedem de incluir em nossa escala de valores mais que uma pequena parcela das necessidades da sociedade inteira; e como, em sentido estrito, tal escala só pode existir na mente de cada um, segue-se que só existem escalas parciais de valores, as quais são inevitavelmente distintas entre si e mesmo conflitantes. Daí concluem os individualistas que se deve permitir ao indivíduo, dentro de certos limites, seguir seus próprios valores e preferências, em vez dos de outrem.

Os limites mencionados acima por Hayek estão vinculados aos necessários requisitos para a vida em sociedade. Um homem vivendo em isolamento não precisa de regras objetivas ou morais. Ele não tem qualquer escrúpulo sobre fazer alguma coisa para o seu próprio benefício e, conseqüentemente, não precisa levar em consideração se a sua ação irá prejudicar ou injuriar os demais. Por outro lado, como membro de uma sociedade, o homem deve sempre considerar, em tudo que faça, não apenas a sua própria e imediata vantagem, mas também os prejuízos que possa causar aos outros indivíduos.

No entanto, como nos adverte von Mises, requerer do indivíduo que ele leve a sociedade em consideração, que ele deva renunciar a determinadas ações que, enquanto vantajosas para si, possam ser prejudiciais para a vida social, não é o mesmo que pretender que o indivíduo deva sacrificar-se pelo interesse dos outros. O sacrifício a que o indivíduo deve impor-se é somente provisional, ou seja, a renúncia de uma vantagem imediata e relativamente menor em troca de um benefício muito maior e fundamental, que é a existência da sociedade, como uma associação de pessoas, trabalhando em cooperação e dividindo um modo de vida comum, no interesse de cada indivíduo.

2. Bem-estar material

O liberalismo é uma doutrina inteiramente voltada para a conduta dos homens nesse mundo. Em última análise, a nada visa senão ao progresso do bem-estar material exterior do homem e não se refere às necessidades interiores, espirituais e metafísicas. Não promete felicidade e contentamento aos homens, mas, tão-somente, a maior satisfação possível de todos os desejos suscitados pelas coisas e pelo mundo exterior.

Freqüentemente, o liberalismo tem sido censurado por sua atitude puramente externa e materialista que privilegia o que é terreno e transitório. A vida do homem, como se diz, não consiste em comer e beber. Há necessidades superiores e mais importantes do que o alimento e a bebida, o abrigo e a roupa. Nem mesmo as maiores riquezas terrenas podem dar felicidade ao homem. Nesse sentido, o liberalismo é a mais completa e absoluta nulidade, pois ele nada tem a oferecer às aspirações mais profundas e mais nobres do homem.

Porém, os críticos que exploram este vazio mostram apenas que possuem um conceito muito imperfeito e materialista dessas necessidades superiores e mais nobres. As políticas sociais, com os meios de que dispõem, podem tornar os homens ricos ou pobres, mas nunca conseguirão torná-los felizes ou satisfazer seus anseios íntimos. Tudo o que as políticas econômicas e sociais podem fazer é remover as causas externas da dor e do sofrimento. Podem promover um sistema que alimente o faminto, vista o nu e abrigue o sem-teto. Felicidade e contentamento não dependem do alimento, da roupa e do abrigo mas, sobretudo, do sonho que se acalenta no íntimo de cada um.

Não é, portanto, pelo desdém aos bens espirituais que o liberalismo se concentra, exclusivamente, no bem-estar material do homem, mas pela convicção de que o que é mais alto e profundo no ser humano não pode ser tocado por qualquer tipo de regulação externa. O liberalismo busca produzir somente o bem-estar exterior, porque sabe que as riquezas interiores, espirituais, não podem atingir-nos de fora, mas somente de dentro, de nosso próprio coração.

3. Tolerância

O liberalismo está restrito, inteira e exclusivamente, à vida terrena. O reino da religião, por outro lado, não é deste mundo. Portanto, liberalismo e religião podem coexistir, lado a lado, sem que suas esferas de ação se toquem. O liberalismo, como visto acima, não pretende intrometer-se no domínio da fé religiosa ou das doutrinas metafísicas. Por isso, a tolerância liberal para com os inúmeros credos e religiões é irrestrita.

Entretanto, como bem escreveu Karl Popper, não podemos manter uma atitude tolerante com os intolerantes. Não se pode permitir que a cooperação pacífica entre os homens seja perturbada pelo fanatismo religioso. Se o liberalismo proclama a tolerância irrestrita em relação a cada fé religiosa ou a cada crença metafísica, isto não se dá em função da sua indiferença por estas questões superiores, mas sim por causa da convicção de que a garantia da paz dentro da sociedade deve ter precedência sobre tudo e todos.

É difícil entender como esses princípios podem fazer inimigos entre comunidades de vários credos distintos. O liberalismo demanda tolerância como uma questão de princípio, não de oportunismo. Ele defende a tolerância mesmo a respeito de alguns ensinamentos obviamente sem sentido, absurdas formas de heterodoxia e ingênuas superstições. Ele defende a tolerância por doutrinas e opiniões que julga ruinosas e danosas para a sociedade, ou mesmo em relação a certos movimentos cujas doutrinas lhe são diametralmente opostas. O que nos impele a defender a tolerância não é o conteúdo da doutrina objeto desta tolerância, mas a certeza e o conhecimento de que somente a tolerância pode criar e preservar a condição de paz social sem a qual a humanidade cairia no barbarismo e penúria de séculos atrás.

4. Racionalismo

Somente será possível, para cada indivíduo, prosperar na busca de seus objetivos, numa sociedade propícia à sua consecução. Mas, por mais elevadas que sejam as esferas nas quais se inserem as questões políticas e sociais, ainda assim se referem a questões sujeitas ao controle humano e, conseqüentemente, devem ser julgadas e decididas segundo os cânones da razão humana. Nessas questões, não menos do que em outros assuntos mundanos, o misticismo não passa de um mal. Nossa capacidade de compreensão é muito limitada.

Nunca poderemos descobrir os segredos últimos e mais profundos do universo. Mas o fato de não termos a capacidade de sondar o significado e o propósito da nossa existência não nos impede de tomar certas precauções no sentido de evitarmos doenças contagiosas ou de nos utilizarmos de meios apropriados para nossa alimentação e vestuário, nem mesmo deve impedir de nos organizarmos em sociedade, de tal modo que as metas terrenas, pelas quais lutamos, possam, efetivamente, ser atingidas.

Mesmo o Estado e o sistema legal, o governo e sua administração não são assim tão elevados, tão bons, tão grandiosos para que o coloquemos fora do alcance da deliberação racional. Problemas de políticas sociais são problemas de tecnologia social, e devemos buscar sua solução do mesmo modo e pelos mesmos meios à nossa disposição usados na solução de outros problemas técnicos, isto é, por meio da reflexão racional e pelo exame das condições dadas. O homem deve à razão tudo o que ele é e que o eleva acima dos outros animais. Por que, então, deveria o homem desprezar o uso da razão justamente na esfera social, e confiar nos sentimentos e impulsos vagos e obscuros?

5. Desigualdade de renda e riqueza

O maior erro dos que pregam a fantasia igualitária está no fato de pretenderem igualar o inigualável. Vítimas do apego a idéias retrógradas, não conseguem enxergar aquilo que o inglês David Hume já sabia desde meados do Século XVIII, quando escreveu: "Por mais iguais que se façam as posses, os diferentes graus de habilidade, atenção e diligência dos homens irão imediatamente romper essa igualdade. E caso se refreiem essas virtudes, a sociedade se rebaixará à mais extrema indigência e, em vez de impedir a miséria e a mendicância de uns poucos, torna-las-á inevitáveis para toda a comunidade".

Além dos atributos citados por Hume, a história nos ensina que a prosperidade é o resultado da ambição individual, da energia, da inteligência, da auto-disciplina, da responsabilidade, do talento, da habilidade e do conhecimento, dentre outros. Quanto mais os indivíduos detiverem essas qualidades, mais irão progredir e vice-versa. Lutar pelo fim das desigualdades é, por conseguinte, contraproducente e inútil.

Aqueles que advogam a igualdade de renda desprezam o ponto mais importante, o problema central, que é o fato de que o total disponível para distribuição, o produto anual do trabalho da sociedade, não é independente da maneira como ele é dividido. O fato de que a riqueza hoje seja tão grande, como de fato é, não é um fenômeno natural ou mesmo tecnológico, independente das condições sociais existentes, mas está inteiramente vinculado às instituições sociais.

Somente quando há desigualdade de riqueza é possível numa ordem social; somente porque ela estimula cada um a produzir tanto quanto possa e ao menor custo, o ser humano hoje tem à sua disposição a riqueza total disponível para consumo. Se este incentivo for destruído, a produtividade seria tão seriamente reduzida que a porção individual, numa eventual distribuição equânime, seria bem menor do que aquela que recebem hoje em dia os mais pobres.

6. A ordem espontânea

A teoria liberal nasceu da descoberta de que as sociedades mais eficientes e prósperas são o resultado de ordenamentos complexos e espontâneos, criados pela ação humana, mas desvinculada de qualquer desígnio expresso dos homens. É através de um processo de ensaio e erro, entre o instinto, a razão e a tradição que os indivíduos desenvolvem um conjunto de hábitos de conduta, de regras gerais de comportamento e de instituições que lhes permitirão a convivência pacífica e a cooperação.

Só a cooperação voluntária, através do mercado, permite-nos processar e transmitir as informações e os conhecimentos dispersos entre milhões de pessoas. Isso jamais seria conseguido por qualquer "planejador", por mais inteligente e gabaritado que fosse.

O funcionamento da sociedade depende, de acordo com Hayek, da ligação coordenada de milhões de fatos e ações individuais, cujo conjunto ninguém seria capaz de conhecer. O conhecimento humano abrange toda a multiplicidade da experiência do homem através dos tempos, algo demasiado complexo para uma articulação explícita que se pudesse apreender. Trata-se de uma "sabedoria sem reflexão, inculcada tão profundamente que se converte praticamente em reflexos inconscientes". Segundo o austríaco, este conhecimento sistêmico, manifestado de forma não articulada na cultura popular, teria mais probabilidade de acerto do que as arrogantes visões de uns poucos intelectuais.

Por isso, na concepção de Hayek a sociedade deve ser comparada a um organismo vivo, que não pode ser reconstruído sem conseqüências fatais, como, aliás, restou comprovado através das diversas experiências comunistas mal sucedidas do Século XX.

7. Liberdade e responsabilidade

A idéia fundamental do liberalismo, como vimos, é muito simples e deriva da ordem espontânea de que falamos. Baseia-se, em resumo, na observância e aplicação de regras universais de justa conduta, que resguardem uma esfera de autonomia dentro da qual o indivíduo utiliza seus conhecimentos e seus recursos para a consecução dos fins que deseje.

Como disseram Voltaire e Immaneul Kant, quase nos mesmos termos, "o homem é livre quando não tem de obedecer a ninguém, exceto às leis".

Como conseqüência lógica da valorização da liberdade, os liberais pregam a responsabilidade individual irrestrita, já que não pode haver liberdade sem responsabilidade. Os indivíduos devem ser responsáveis pelos seus atos, vale dizer, devem ter em conta as conseqüências das suas decisões e os direitos dos demais.

Os liberais lutam por uma sociedade regida por leis neutras, que não beneficiem pessoas, partidos ou grupo algum e que evitem, energicamente, os privilégios. Defendem, ainda, que a sociedade deve controlar de forma estreita as atividades dos governos e o funcionamento das instituições do Estado.

A essência desse modo de entender a política e a economia está em não determinar previamente para onde queremos que marche a sociedade, mas em construir as instituições adequadas e liberar as forças criativas dos grupos e dos indivíduos para que estes decidam, espontaneamente, o curso da história. Os liberais não têm qualquer plano ou desenho para o destino das sociedades. Ademais, lhes parece muito perigoso que outros tenham tais planos e arroguem-se o direito de decidir o caminho que todos devemos seguir, como é próprio das ideologias marxistas.

Nesse sentido, talvez quem melhor tenha traduzido o ideal liberal, em contraposição às inúmeras ideologias coletivistas que proliferam no mundo desde Platão, foi David A. Keene, quando disse:

"O mundo sempre esteve dividido em dois grupos básicos. O primeiro é composto daqueles que acreditam saber como todos os outros deveriam conduzir suas vidas, ordenar seus negócios e educar suas crianças, e vê o governo como uma forma de impor seus pontos de vista aos menos esclarecidos.

O outro grupo é composto daqueles que desejam apenas cuidar de suas próprias vidas, ganhar dinheiro honestamente e criar seus filhos da maneira que acreditam mais adequada. Essas pessoas encaram com ceticismo aqueles que dizem que elas deveriam viver de forma diferente 'para seu próprio bem' e desconfiam de um governo dirigido por esse tipo de gente
".

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